“Zé anda, vem daí, vamos ao pátio do senhor Barroso ver os ramos que o Ernesto, o Zé Nunes, os Lúcios e os Matanças estão a fazer”… chamavam-me e lá ia eu a correr, esbaforido de felizes e urgentes contentamentos e curiosidades, todos os anos repetidas e nunca satisfeitas, para ver os maiores e mais lindos ramos que apareciam na missa e na procissão do Domingo de Ramos, na Igreja Matriz de Mangualde.

Era eu um garotito e, todos eles eram já feitos jovens adultos, conhecedores e sabidos de todos os segredos dos fazeres e afazeres das mais diversas festividades, pagãs ou religiosas, e de outras tradições da aldeia e das lavouras, de que todos, ou quase, sobrevivíamos.

Era um pátio grande, de muros altos, muito altos com um portentoso portão de ferro, pintado de verde, maior que os muros, era a casa da Senhora Gracinha, onde morava o Snr Barroso, GNR, abria-se o portão e… lá dentro, como que numa operação secreta, todos eles, Barrosos, Matanças, Nunes e Lúcios se afadigavam na concepção, construção e montagem dos andores ou estruturas base em madeira para os ramos, imensos e lindos que seriam… em nome e pela honra e pergaminhos nessa matéria da Quinta de S. Cosmado, e da celebração religiosa que vivíamos e, por ali me ficava embevecido a olhar e a apreciar a feitura dos ramos, nenhum detalhe me escapava, era aprender para um dia vir a fazer.

O terreiro do pátio estava abarrotado de madeiros, troncos de pinheiros de pequeno porte, pernadas grandes, médias e pequenas de loureiros floridos aos molhos, ramos de camélias, giestas e outras flores, celofanes, tangerinas, chocolates, enfim… tudo recolhido, apanhado, transportado e ali concentrado, para os ramos.

Construídas ou montadas as bases enformadoras de cada um dos vários ramos, seguiam-se as operações de as enramar com os loureiros em flor e depois enfeitar com camélias, giestas, etc… tudo bem seguro a desfiadas tiras de piteira, e ainda os celofanes, etc… e tudo o mais que a imaginação aldeã e os parcos tostões de todos tinham conseguido… finalmente, depois duma semana de trabalho, sábado à tarde… “habemus Papa”, havia ramos, finalizados, impressivos nos tamanhos e formas, odores e coloridos… enchiam as vistas … dava gosto vê-los!

Domingo, manhã bem cedo, vestia-se a melhor fatiota, tudo lavadinho e passado a ferro, casaquito se o havia… inspeccionavam-se e davam-se os últimos retoques nos ramos e nos enfeites dos mesmos e, aí uma hora antes da missa, levantavam-se os pesados e enormes ramos do chão ou dos cepos, todos em formato de andores de carregar aos ombros ou a braços, dois ou quatro homens cada um e aí iam eles a caminho da Igreja, pelo alto do povo, passavam na rua à porta da minha casa para o cemitério e, logo a seguir, depois do grande penedo de granito, que fazíamos de escorrega no ir e vir da escola, ei-la, a Igreja Matriz, em toda a sua vetustez milenar…

… as gentes da Quinta de S. Cosmado/ Bairro de S. João vinham em peso logo atrás, orgulhosas daqueles espantosos ramos que faziam seus, sentiam-se envaidecidas, pois com eles também eram notadas e conotadas, quiçá invejadas… subida a escadaria da Igreja, chegados ao átrio lá em cima… era sempre um espectáculo renovado e inesquecível feito mar de gentes adomingadas e felizes, de rostos solenes, por vezes sorridentes, todas e cada uma com o seu ramo, num sem fim de ramos de todas as formas e tamanhos mas, os nossos eram sempre os maiores, os mais vistosos e admirados…

… seguia-se a missa… a bênção dos Ramos e depois a procissão à volta da Igreja, vivida sempre numa ambiência mista de religiosidades e misticismos tão fortes e tão reais, que a todos nos agarravam e transcendiam… ali respirava-se e sentia-se Jesus, Ele estava ali presente, tinha de estar, estava sim, nas palavras inspiradas do padre celebrante, nos actos litúrgicos, nos ramos, na fervorosa devoção transparecida dos olhares e sentires de coração feitos, e no amor ingénuo daquelas gentes, cuja simplicidade e o crer com e por Fé… Lhe davam corpo, ser e presença… sim, Jesus Cristo estava ali, feito amor entre todos e a todos, e estava ali pela sua natural omnipresença, naquelas comemorações anuais, quase bimilenárias, da sua entrada triunfal em Jerusalém….

…todo o ritual em si mesmo era duma beleza única, feita de singelezas e da alma boa de todos nós, gentes das terras de Azurara, gentes boas e sem maldades, nem hipocrisias, mergulhadas nos mil e um imemoriáveis odores e cores, fortes e hipnotizantes das flores douradas, brancas, rosas e vermelhas dos loureiros, giestas e das elegantíssimas camélias, como que pintadas num fundo feito dos verdes profundos das folhas de todas elas.

Depois dos ramos abençoados, cansados e felizes, nós voltávamos a casa, em paz e de corações ao alto, para continuarmos a viver a Semana Santa… lá na aldeia.

Este domingo é Páscoa, é o Domingo do Cristo Ressuscitado em aleluias da sua vitória sobre a morte, depois de na Quinta Feira Santa ter sido traído e na Sexta Feira Santa, crucificado e falecido, para redenção dos Homens.

Em Páscoas antigas, de anos há muito passados, todos então cumpríamos, devotamente, os actos religiosos que faziam parte de nós próprios, tal como parte de nós eram as nossas actividades laborais, familiares e lúdicas… todos nós éramos então Deus, nação e família, uma trindade de valores, una, indissociável e bonita, que era o nosso Mundo.

Vivíamos a Semana Santa, divididos entre as liturgias da mesma e trabalhos muitos e variados, pois havia que vestir a aldeia de lavado, higienizando e caiando as casas, varrendo e asseando as ruas, puxando pelos cordões à bolsa para comprar umas amêndoas, folares, talvez uma pernita de cabrito para assar no almoço da Páscoa… e, preparar tudo para as visitas Pascais… íamos receber Cristo ressuscitado em nossa casa…

… e Ele vinha, vinha mesmo, em pessoa, de Padre à frente, o Snr Cónego Monteiro para Mangualde e o Padre Eugénio ou outros para as aldeias em redor, anunciando-se em aleluias e mais aleluias, benzendo-nos as ruas, as casas e as famílias, com fartas águas bentas, bem tilintadas a sino e bem aspergidas sobre as cabeças de cada um e de todos… e Jesus lá vinha, calmo, sereno, amigo, cheio de luz, perdão e amor, ao colo do sacristão, simbolicamente deitado na sua cruz sacrificial, onde o beijávamos com veneração, logo à entrada de casa… joelhos em terra, coração e alma bem erguidas ao alto e ao céu.

Na Semana Santa, as mulheres lavavam as roupas da casa e da família em barrelas gerais, as mobílias dos quartos eram postas na rua, desmontadas, desparasitadas a creolina e DDT´s… os colchões esses, depois de lavados, enchiam-se com nova palha centeia, coisa que a minha avó fazia com maestria, ficava tudo a apanhar sol quando o havia e caiavam-se então as casas… por dentro, a minha mãe gostava de dar cores à cal, com anilinas azuis, amarelas e até verdes, para um ou outro compartimento e lá pintávamos tudo…

… depois era o esfregar e lavar dos soalhos de madeira, à força robusta dos braços camponeses e do sabão azul ou vermelho e mais da escova de sólidas cerdas, coisa também de mulheres e, finalmente, a reposição das mobílias nos seus lugares… ah! a casa parecia outra, depois do Inverno e dos negros fumos das lareiras, longamente acesas a lenha para fazer comeres e afugentar frios…

… bendita Páscoa.. e a casa ficava assim pronta para receber Cristo redimido e salvador, que vinha, vinha sempre… nesse tempo, ali, à nossa casa e à de toda a gente, falávamos até com Ele, que nos sorria silenciosamente… hoje, quem sabe por onde andará… ou sequer se andará, a maldade humana tudo tem feito para de nós e deste mundo O expulsar.

Chegado o domingo de Páscoa… a aldeia acordava então de ruas limpas e varridas, alindadas com passadeiras feitas de urzes, rosmaninhos, etc… decoradas e bordadas a pétalas de camélias, de rosas e de giestas em flor… e de casas caiadas, e acordava com alvoradas a morteiros e foguetes estrelejantes… e a pergunta “a que horas chega o padre” a correr de boca em boca… e todos nós limpinhos e as vestimentas também… com umas amendoazitas no bolso, a chupar de quando em quando, nem todos, mas enfim… se o padre vinha tarde eu tinha tempo de ir à minha madrinha, a D. Isabel, receber o folar, um saquito de amêndoas, um bolo e uma nota de vinte escudos, pedia-lhe “a sua bênção minha madrinha”, estendia-me a mão, que eu respeitoso beijava, e voltava para casa, era uma tradição bonita, que eu gostava …

.. a vinda do Padre e de Cristo a casa de cada um era o ponto alto de todo este cerimonial da visita Pascal… pois a bênção da Família e da casa era tida muito a sério, depois … chegava o almoço, melhorado, sempre que podíamos era a pernita de cabrito assada no forno do fogão, em alternativa chicharro, ou outra qualquer coisa… o dia em si mesmo e o seu significado valiam o bastante, para nos fazerem felizes…

… por vezes à tarde, fazia-se bailarico lá no alto do povo, acordéon, concertina, gaita de beiços, às vezes coisa já mais sofisticada, como quando o Zé Nunes, que Deus tenha em descanso, comprou o seu gravador de fitas, único na terra e muitos quilómetros em redor, com três horas de música contínua para ouvir e dançar… ali dei os meus primeiros passos de dança, por favor da Dona Teresa, mãe do meu saudoso amigo Manelito, que morreu num acidente de avião para os lados de Seia, em 1968…

… como eu me recordo e sinto saudades destes tempos de religiosidades e ruralidades quase medievas… mas era tudo tão diferente, tão autêntico, mais rústico, mais sóbrio, menos evoluído, mas tão verdadeiro… tudo tão mais sólido, tão mais futuros garantidos… tudo tão mais cheio de certezas… sobre a vida, sobre Deus e os Homens…

… hoje já não sei nada de nada, nem sequer se haverá amanhã… será que aquela coisa da guerra da Ucrânia vira nuclear e vamos todos embora… só Deus sabe… que saudades desse meu Deus que andava por aí a pé, como se fosse mais um de nós, sem inimigos de outras crenças, que nos visitava em casa, e a quem beijávamos, rezávamos e até com Ele falávamos… será que haverá mais Páscoas e Ele volta às nossas casas?

Espero que sim, Deus está presente como sempre entre nós, Ele nos salvará mais uma vez, com novas Páscoa para Ele e para toda a Humanidade.

 


José Luiz da Costa Sousa

    Um Mangualdense