Nos idos de Maio chega Junho, e com ele, as festas dos Santos Populares e o Verão; noutros tempos, tal bastaria para trazer entusiasmo à então vila de Mangualde e a todas as aldeias do Concelho, em particular, a festa do St. António, ali mesmo na serra do Santo, para lá de S. Cosmado, a caminho de Viseu.

Simples e diferente, era de todas a mais querida dos povos em redor!

Quanta beleza na austeridade eremita e humilde da capelinha, toda ela singeleza, avultando no alto da serra, lá entre os rudes granitos, perfumada em cores de giestas, urzes e estevas, que por ali a esmo se criavam, e acenada ao perto, no ondular da rama dos verdes pinhos envolventes.

Fui assim que a vivi e assim a recordo!

Amanhecido o dia de St. António, logo as mulheres, por essas aldeias fora, botavam mãos à imaginação, aos parcos haveres e comeres, e toca de cozinhar o farnel, que se fazia tarde, para se deitarem as famílias ao caminho, não fossem perder o melhor da festa, a bênção das ovelhas.

E vinha gente a pé de todo o lado; era vê-los, fatiota domingueira, as mulheres de canastras ou cestos de vime à cabeça, abarrotados de merenda, os homens prevenidos do seu melhor tinto, em garrafão de cinco litros, o “palhinhas”, e a criançada esfalfada em ruidosas correrias de pé descalço, esganiçando os corações das mães em preocupados gritos de “Zés e Manéis andem cá”..

E assim, atalhando caminhos a eito, ao som de cantares que, aqui e ali, brejeiros e espontâneos, irrompiam da alma das gentes, na voz fresca de rapazes e raparigas, felizes, lá iam chegando ao St. António.

Ali chegados, já pela serra se estendiam as barracas de vinho e petiscos, doçarias, estampas do St. António e até brinquedos; por essa hora, batia a pique o sol quente de Junho, convidando os homens a encostarem a sede aos balcões das improvisadas tabernas, logo ali afogada a copos de três e dos mais que se seguiam..

Ligeiros, volteavam os miúdos em torno da capela, olhar guloso e ávido posto nas cavacas, corações e beijinhos, ofertados a cruzado pelas doceiras…

Entretanto, buscavam as mulheres a melhor laje ainda vaga, e vá de pôr mesa, com toalha, comes e bebes no chão, para onde em redor era chamada e sentada a família, e toca de petiscar e beber, saciando os apetites e até curiosidades, no olhar saltitante e no ouvir mexeriqueiro das gentes, que só por estas ocasiões se mostravam e encontravam.

O ponto alto da festa era então a bênção dos rebanhos, que em andanças e transumâncias, vindas do recuo dos tempos, por ali perto passavam a caminho dos pastos de Verão.

Eram os rebanhos as estrelas do St. António, e chegavam numerosos, chocalhos e campainhas tilintando em tudo o que era pescoço ovino e caprino, corpos sarapintados em policromias, feitas a propósito, espalhadas por lãs, pêlos e até em laçarotes, plantados nos córneos e altivos apêndices de bodes e carneiros.

A cada rebanho, seguido de imponentes “serras de Estrela“, armados de aguçadas coleiras até aos dentes, pastor à frente e cajado na mão, cabia por tradição dar umas tantas voltas à capela, desfilando em caleidoscópios de cores e badalando sons mil, em meio a nuvens de pó erguidas no interminável tropel de patas, enquanto o povo absorto no inolvidável espectáculo, todos os anos renovado, lá ia rumorejando interjeições de pasmo, no passar dos rebanhos do “Ti este ou aquele”.

Cumprida a missa e a bênção, na devoção do povo e espanto dos bichos, comprado o santinho, estampado e plumado, vaidosamente exibido na aba dos chapéus, acabados os comes e bebes, era o regresso a casa.

E assim Deus, Povo, Animais e Natureza viviam e conviviam, em harmonia, alegria e amor; outros tempos, outros usos.

E vinha logo a seguir o S. João…

Trazia depois Junho o S. João, e de novo a alegria profana da festa descia aos povoados, desta feita, era o “saltar das fogueiras” ardidas em agrestes cheiros de rosmaninhos, apanhados por matos e serranias…

Lá para a tardinha, no largo da aldeia, juntava-se o povo, acendia-se a fogueira em fumos perfumados, e vá de saltarem raparigas e rapazes casadoiros, ora para cá, ora para lá, bem atentos estes às saias voando nas labaredas, e aos acasos da sorte, revelada nas curvas indiscretas, das pernas mais afoitas das moçoilas.

Depois, à volta da fogueira, o ritmo melodioso de harmónios e harmónicas faziam jorrar e bailar a alegria em viras bem virados, raspas, marchas e até o malhão, bem malhado noite dentro.

Lá para a meia noite, cansada e de rosmaninhos fumada, adormecia a aldeia, enquanto o borralho quente da fogueira morria em cinza fria, só lá para o nascer do dia, no cantar do galo.

E eram assim o St. António e o S. João; era assim a minha terra Natal, Mangualde!

José Luís da Costa Sousa

Um Mangualdense