“Zé, levanta-te que temos de ir deitar a água para as batatas, antes que o sol aqueça e seja tarde de  mais…”, cinco da manhã… a voz autoritária e não discutível da minha avó dizia e eu obedecia, sem estremunhar sequer… saltava de imediato da cama, enfiava as calças ou calções, comido de um prato de sopa ou, por vezes de uma gemada de ovos e, a minha avó bebida de uma boa malga de café de mistura, que adorava, mais um pedaço de broa, lá íamos a caminho do “lanteirão”, “regada” ou “tapadinha”, terras que garantiam a subsistência da família, em trabalhos de sol a sol, quase contínuos ao longo do ano, no meu caso, intervalados apenas pelos estudos no Colégio.

“Deitar a água” e regar eram um ritual de realismo e fé na natureza, do qual dependia o bom sucesso das culturas e o haver ou não que comer, ano inteiro; o tempo,  em particular a água e o sol, eram o ouro da terra e de quem dela vivia; a água era por vezes chuva abençoada, mas, por norma era tirada dos poços à força dos incansáveis e rústicos braços beirões, com engenhos a caldeirão e ou motores, e das poças com “agueiros” ou pelo simples abrir da água por gravidade, conduzida depois à sachola, regos e atalhos fora para regar o que fosse…  sempre e só manhã cedo ou à tardinha, quase noitinha.

Havia poços e poças com águas partilhadas desde sempre, por solidariedades  imemoriáveis, entre vizinhas terras de cultivo, e com regras rígidas garantidas pela “palavra de honra” entre camponeses, vindas da profundeza de séculos e séculos de ruralidades… passadas de geração em geração, como se escrituras fossem… e cumpridas religiosamente por todos, não carecendo de nada mais, apenas e só da palavra… e tal, tinha força de lei, pois nesses tempos, a honra de cada um era a lei de todos e tanto bastava; foram tempos de palavra e de honra.

Se, em acto de desespero, por secas ocasionais, um ou outro aldeão, ia deitar a poça ou poço fora do seu tempo partilhado, intervinha o Regedor da Aldeia (o Senhor Artur na Quinta de S. Cosmado),  ou saía grossa sarrafusca… pois estava a sobrevivência em causa.

Na aldeia dumas 40 famílias ali, no hoje Bairro de S. João, onde cresci e vivi, todas elas tinham as suas agriculturas, maiores ou menores… pois nenhuma dispensava ter as suas próprias batatas e couves e o mais que fosse.

Para além destas regas, como era a campesina vida desses tempos?

Na perspectiva dos dias que hoje correm, ou dos citadinos de então, gentes de outros misteres, era uma vida agreste, dura, inclemente, exigente, de muitos e variados saberes, embora se julgue o oposto, muito esforçada fisicamente, por vezes até ao limite… e, sobretudo, sem descansos; assim era, mas fez-me muito bem, ensinou-me a vida.

Em Janeiro e Fevereiro decidia-se o que plantar e semear, como, quando e onde, havia rotação de culturas várias, planeavam-se as sementeiras mais temporãs e as mais serôdias e, começavam-se a preparar os terrenos, a limpar os silvados nas beiras dos caminhos e a fazer os cadabulhos (limpar os limites das terras a semear ou plantar) para a cava ou lavra dos mesmos, o rogar dos homens para a cava ou, em alternativa, o rogar do “lavrador e carro de bois” para a lavra…

…. havia que ter o estrume, (vegetação rasteira roçada das matas no ano anterior, curtida pelas chuvas e pelo pisar e excrementar dos porcos e não só), pronto para transporte em carro de bois, ou à cabeça em canastros ou gamelas pelas mulheres, para a terra já cavada ou arada, gradeada de frente e costas ou alisada à enxada; dispunha-se depois esse estrume em montes pelos terrenos fora, espalhava-se uniformemente à forquilha e, quando tudo estava pronto,  cumpria-se o ritual final do plantar ou semear… cada uma das culturas com os seus diversos procederes… e tempos próprios.

Permitia-me aqui e agora uma simbólica homenagem aos três grandes homens, que foram os últimos, quase míticos, lavradores da época, o Ti Roseta, o Ti Manuel do Pedro e o Ti António… que ficaram para sempre no meu imaginário adolescente, como figuras únicas e maiores das agrícolas de então; fortes, serenos, determinados, sabedores e dominantes, de aguilhão firme empunhado numa das mãos, frente às suas juntas de bois de canga posta e, solidamente comandadas com a outra mão a rédea curta, com constantes “eh! boi!” na boca, não havia tarefa da sua lavra, por difícil que fosse, que não resolvessem; foram os últimos dos lavradores, antes das máquinas, os tractores, os substituírem, inexoravelmente, ali em S. Cosmado, Quinta de S. Cosmado e povos em redor;  nunca mais houve lavradores, ali e nas aldeias à volta!

As sementes eram a alma da agricultura, guardadas por cada um, religiosamente, de ano para ano, ou compradas no Grémio da Lavoura, na feira e até na velha praça ali no largo Dr. Couto… debaixo da árvore grande, ainda hoje viva testemunha desses tempos, onde sobressaía a figura inesquecível da Tia Lucília, todas puras e orgânicas, sem os venenos das sementes híbridas ou geneticamente modificadas de hoje, verdadeiras bombas cancerígenas.

Fevereiro, Março e Abril, inicio da Primavera, era o lançar da esperança, da vida e das subsistências desta campos fora, nas sementes e nos braços aldeões, braços estes que lhes conheciam todos os segredos, para que da terra úbere por eles trabalhada, fizessem brotar os seus melhores frutos feitos batatas, feijão, milho, centeios e cevadas, ervilhas, favas, couves, tomates, pepinos, chícharos, nabos, uvas, etc, etc, etc…. sustentos básicos de aldeões e vilões … e não só.

Gostava particularmente da sementeira das batatas, primeiro a cava da terra à enxada, (em alternativa à charrua puxada por bois), e lá vinham a pé de Moimenta, o meu avó, o Ti Zé Luís, forte de carácter, magro, seco, altivo, de poucas palavras e rijo como um pinheiro, sempre de beata enrolada à mão, por vezes acesa mas, o mais do tempo apagada e colada num cai e não cai ao canto da boca e, numa instabilidade ainda mais notável ao falar; vinha sempre mais os meus quatro tios, chegavam, matabichavam a aguardentezita e mais uns figos secos… e íamos para a Regada…

…onde a belga para as batatas estava já de cadabulhos feitos e de terra amolecida pela rega uns dias antes, alinhavam-se lado a lado no correr da primeira manta (rego relativamente profundo e largo) já feita e, de enxadas ao alto, simultâneas como que em rigorosa ordem unida militar, faziam-nas descer com força, harmonia e precisão, sobre a manta seguinte ainda virgem, numa cadência ritmada pelo saber de muita terras cavadas e esventravam-na sem dó nem piedade, virando-a para dentro da manta anterior já escavada…

… a 1ª enxada ia rapando a cobertura de erva superficial do terreno, “o rapum”, para dentro da manta, as seguintes faziam a cava virando a terra sobre o “rapum” e iam desfazendo e alisando os torrões maiores, e assim seguia a cava, com o omnipresente palhinhas de 5 litros de caseiro e bom tintol, sempre à frente e à sombra, de copo único virado sobre a rolha, até o meu avô gritar “água” e aí, alto ao trabalho, costas direitas, enxadas em descanso e logo a minha avó avançava, rápida, garrafão inclinado debaixo do braço e servia no mesmo copo, a cada um e à vez, o seu copito de tinto…

…o meu avô renovava o seu cigarrito… puxava umas fumaças e a cava continuava… intervalada apenas pelos comeres e beberes… até lá para perto do sol pôr…  e, assim, depois dum dia de trabalho, árduo e contínuo … e de mais uma volta pela terreno a ultimar o esfarelar dos torrões e o alisar melhor da terra, esta ficava pronta para arejar e secar uns dois dias, espalharmos o estrume e semear as batatas…

… no fim do dia, tios e avô, este com a sua inseparável beata, regressavam a Moimenta do Dão de enxadas aos ombros… e a pé, excepto o Ti Manel que tinha bicicleta… um luxo raro em tais tempos; voltaríamos a reunirmo-nos na festa de Moimenta e na arranca das batatas…

A sementeira era tarefa mais ligeira e simpática; alguém ia partindo as batatas de semente, divididas pelo números de grelos, a minha mãe… e colocava-as num cesto com jeito para não se partirem esses rebentos … outro, a mais das vezes eu, abria à sachola um rego a direito e de pouca profundidade, ao través da terra, depois, a minha avó, com outra sachola puxava o estrume superficial ao lcorrer do rego para dentro deste, e logo se iam colocando, ao longo desse rego, as batatas partidas com os grelos para cima, feito isto, iniciava-se novo rego, cuja terra ia cobrindo em rampa o anterior de batatas já semeadas e era assim, horas seguidas… até ao fim, dois dias depois.

Paralelamente com as batatas, pouco antes ou depois, iam-se plantando os pés de couves, tomateiros, cebolo, pepinos, etc… e semeando à mão cevadas e centeio em Novembro e Dezembro, e milho em Abril, os feijões, favas, chícharos, etc… Março, Abril… etc…

Nos intervalos destes trabalhos todos, iam-se tratando videiras e vinhas, a poda e depois a empa, que eram o corte e o amarrar dos braços/ vergas aos cordões, depois o sulfatar ou o curar contra míldios e oídios, a limpeza do excesso de folhas, etc…

Entretanto, os campos semeados e plantados iam explodindo em vida, e tudo o que lá tinha sido botado à terra começava a nascer, a enrijar e crescer, estendendo os seus ávidos pés, braços e abraços recém nascidos em direcção ao sol, como se fossem aleluias à vida e ao trabalho e, agradecimentos ao amor e devoção das campónias gentes, cujo saber secular nas artes do trabalhar e fecundar a terra, qual verdadeira amada/ amante, se traduzia neste milagre do pão, batatas e tudo mais, todos os anos renovado, de que subsistiam as famílias.

Era de facto carinho, devoção e felicidade que eu via nos olhos da minha avó, quando, diariamente, dava a volta pelas várias culturas e as via a rebentarem e crescerem sãs e sólidas e a tornarem-se no pão de todos nós.

Havia, no entanto, que cuidar continuamente de todos aqueles frutos da terra, com regas para não secarem, com sachas para limpar as ervas daninhas, com curas ou pulverizações para eliminar males e parasitas, etc… pôr estacas nos feijoais e ervilhais, cortar as “curutas?” dos pés de milho , etc… era um sem fim de tarefas diárias… que se cumpriam sempre com perseverança, crença na terra e redobrada energia… apenas esmorecida, quando algum mal afectava uma das culturas…

Depois começavam as colheitas, primeiro cevadas e centeios em Maio… havia que ceifar, fazer molhos, levá-los para as eiras em carros de bois, malhá-los a mangual, secar os grãos e arrecadá-los para pão ou animais… o arrancar das batatas temporãs e depois as serôdias, o cortar dos feijoeiros, ervilheiras e o levá-los para as eiras também… para aí lhes tirar os frutos..   secar e arrecadar…  mais tarde era a vez do milho, cortar canas, juntar em molhos, levar para a eira e seguiam-se as suas inesquecíveis desfolhadas…

… aí, todo o povo ou quase, em solidariedades vizinhas, amigas e seculares, lá vinha para a desfolhada da Tia Maria Alexandra, a minha avó, e depois de todas as outras e outros Tis e Tias da aldeia e à vez, juntavam-se e sentavam-se na eira, em torno do enorme monte das canas de milho, de maçarocas prontas a descascar…  e entre cantigas com e sem desafio, tintos e petiscos, a alegria autêntica das almas simples da aldeia, irmanadas nesta solidária entre ajuda  comunitária, redobrava quando em alvoroço alguém apanhava uma espiga vermelha e gritava “milho rei !”, assistindo-lhe o direito extraordinário de abraçar todos em volta e, até de beijar os desfolhantes do sexo oposto, oportunidade única para namoros e aspirantes ao dito se tocarem… depois estendiam-se as espigas na eira, secavam, malhavam-se para lhes tirar os grãos… uns dias mais de eira … e iam para as arcas… e dele se fazia regularmente o pão, as broas, no forno do povo, ou particular.

Broa, batatas, couves e pouco mais eram a base alimentar dos aldeões que serviam apenas e só a terra, como verdadeiros servos da gleba, do nascer ao pôr dosSol…  mas esta servia-os a eles também, retribuindo-lhes em pão e vida, todas as azáfamas infindáveis que lhes exigia, e dava-lhes, sobretudo, um profundo sentimento de dignidade humana, autoestima e liberdade individual, pois todos tinham de seu ou arrendadas, terras e casas… e delas subsistiam por inteiro, com uns dias rogados por fora, de quando em quando…

… mas, o mais do tempo, os rurais eram donos absolutos de si próprios e dos seus afazeres, dependiam apenas de si e do clima… e não de quaisquer patrões, nem de humilhantes esmolas sociais ou burlas ao Estado ou a quaisquer terceiros; eram gentes totalmente auto suficientes, honestas, gentes de honra, trabalhadoras, verdadeiros senhores em casa própria, duma grandeza notável, embora sempre vestidos de singeleza e humildade.

Nada neste mundo mais realiza e felicita o ser humano do que a sua independência individual e total, e os rústicos beirões, que viviam de e para a terra, eram independentes, mais que nenhuns outros…embora olhados de fora, erradamente, parecessem algo diverso.

O fazer ou o cozer do pão era uma técnica, que todas as famílias conheciam, havia que moer o milho ali na fábrica e moinho do Duarte Carvalho… ia o grão e vinha a farinha à cabeça das mulheres… que, ao chegarem a casa, a peneiravam, separando a farinha fina da mais grossa, da fina faziam pão e da mais grossa, umas papas (relões?) para comermos de quando em quando ou, ia para os animais; depois de peneirada a farinha, esta era amassada com água nas masseiras de madeira com tampa, todos tinham uma na cozinha, onde servia também de mesa, misturava-se fermento e, feito isto, encostava-se a massa a um canto da masseira, com as costas da mão fazia-se uma cruz ou várias cruzes na massa para a abençoar e não azedar, um pouco de farinha por cima, fechava-se a tampa e esperava-se que fermentasse…

… logo a seguir, moldavam-se as broas, punham-se num tabuleiro, umas 15 para duas semanas, e levavam-se para irem cozer ao forno, entretanto aquecido a rama de pinheiro… e já de tijolos refractários brancos de prontidão para cozerem o pão… fazia-se sempre uma bola, grande e espalmada, recheada com chouriço ou sardinhas… que se  comia ali no forno, entre a família e amigos… era um dia diferente e de quase festa, era dia de pão fresco, de gostosa bola e de convívio…

O ano ia-se assim escoando nos fins de Setembro, anunciando o acabar do Verão, e chegavam as vindimas…

Antes da vindima havia que lavar, embuchar e preparar as dornas, pipas e pipos, lavar os lagares (quem os tinha), rogar o pessoal, mulheres para vindimar, o lavrador para levar as dornas com os “cachos”, hoje uvas, para os lagares, os homens para pisar as uvas, etc…

As vindimas eram a festa maior do trabalho, animada pelos alegres cantares das mulheres e dos homens, que iam cortando e apanhando as uvas, que enchiam cestos, logo despejados em canastros ou gamelas maiores, que outras mulheres ou homens transportavam á cabeça ou aos ombros para as dornas, as quais seguiam em carros de bois para os lagares… onde, acabada a vindima, eram pisadas pelos homens de calças arregaçadas, de pés e pernas nuas até aos joelhos… ora rodando em abraços entre todos de ombro a ombro, ora sós girando  sempre… e cantarolando refrões que a memória me levou… num cerimonial vindo do princípio dos séculos… até que todos os bagos fossem esmagados… então saíam, lavavam as pernas e avançava uma ceia farta e merecida.

Uns dias depois, fermentado o vinho, tirava-se e deitava-se nas pipas e pipos… onde ficaria… até ao São Martinho, tempo em que estaria já pronto a beber e depois por ali permanecia até à trasfega, para venda e ou consumo caseiro.

Já em Novembro semeavam-se nabais, plantavam-se couves repolho e outras… e em Dezembro havia que apanhar as azeitonas, poucas ou muitas, quase todos tinham umas tantas oliveiras, que davam azeite para o ano inteiro ou quase… .

Havia que varejar as azeitonas, estender os toldos debaixo das oliveiras onde estas caiam, e onde eram apanhadas à mão, separadas das folhas e ensacadas,  depois transportadas para o lagar… o do Venâncio… e ali ficávamos até sair o nosso azeite, ainda quente…. e que, com um pedaço de pão de segunda, sabia muito bem comer, às vezes já altas horas da madrugada… ali mesmo no lagar…. era onde sabia melhor, com toda aquela ambiência e cheiros de azeite novo, zorras, prensas, etc…

As agriculturas eram ainda complementadas com a criação de galinhas, coelhos, porcos e alguns caprinos ou ovelhas… para venda, leite, ovos e carne… o que dava trabalhos extra e muitos… os camponeses eram, pois, gentes de mil e um pequenos saberes práticos e de mil e um sacrifícios e trabalhos … que quem por lá não passou, nem sequer imagina… nem sabe… e nunca saberá.

… mas era um mundo maravilhoso, embora rude, exigente, difícil e trabalhoso, como nenhum outro; hoje tudo é diferente, mas ainda restam gentes que, mais por paixão dessas agriculturas, do que por necessidade, mantêm vivas estas artes e práticas de subsistências tradicionais, que foram séculos de pão de Portugal e dos portugueses, e de que são pequenos exemplo dois dos meus irmãos, a quem aqui presto uma simples e simbólica homenagem, por isso mesmo.

José Luís da Costa e Sousa

Um Mangualdense