Aconteceu mais um regresso às aulas!

E as escolas primárias e todas as outras de Mangualde voltaram à sua intensa vida educativa, depois das férias grandes, num ciclo que se repete, incansável e sucessivamente, gerações após gerações.

À medida que o tempo se me vai no tempo findando, as memórias dos inícios das aulas dos meus anos infantes, assaltam-me em tropel e, muitas vezes, a melancolia e a saudade, insistentes, levam-me de novo, de mãos dadas, a revisitar aquela que foi a minha Escola Primária, em Mangualde, hoje ampliada e a outros fins votada, mas ainda assim dedicada a actividades igualmente nobres.

Quantas vezes dava e dou por mim ali, de olhar posto nessa minha antiga Escola, no Largo dito das Carvalhas ou das Escolas, ensimesmado, absorto, retrocedendo no tempo e vagueando a imaginação pelas suas vetustas paredes, de patines e cores vestidas pelo seu longo existir, hoje disfarçadas em alvuras de novas tintas!

E, não me canso nunca de lhe admirar a beleza e singeleza da sua inconfundível arquitectura, que ora se ergue em sólidas elegâncias e formas, memórias eternas que são de todos nós, os que a vivemos, ora logo se abre em largas e envidraçadas janelas que inundam de luz as salas de aulas, ora nos apresenta a entrada principal, elegante e digna, encimada esta por uma outra porta a dar para um varandim, onde então se içava e flutuava sempre a Bandeira Nacional.

E olhando-a, a memória velha que é já a minha, vê-me a chegar ali no meu primeiro dia de escola, receoso e embasbacado, agarrado à banda da  saia da avó, a Tia Maria Alexandra… ia já o Dezembro adiantado, e isto porque….

.. uns dias antes, dois guardas republicanos, o Sr Barroso e outro, tinham ido lá a casa, na Quinta de S. Cosmado… e chamaram da rua : – “ Ó Senhora Maria?!”… era a autoridade, a minha avó veio logo em correres imediatos à porta e … “Bom dia Sr Barroso, o que deseja?!”… ao que este respondeu… “Vimos por causa do seu neto, porque é que ele não se apresentou na escola em Outubro, como devia?!”… “Bem, o meu neto só faz 7 anos em Dezembro, e o meu filho e eu achamos que ele é ainda muito pequeno… vai para o ano…” … “Não, apresente-o amanhã na escola, sem falta, e logo de manhã”.

A autoridade do Estado, eficiente e vigilante das devidas e obrigatórias educações e culturas, não tinha deixado passar mais de dois meses, identificou-me como faltoso e, mandou a GNR apresentar-me na escola primária… corria o ano de 1954… tinha eu 6 anos, mas fazia 7 ainda nesse ano.

E no dia seguinte, manhã cedo, lá estávamos, eu e a minha avó… meios surpresos e nervosos, no portão de entrada principal, que dava para o largo pátio do recreio da Escola; era o intervalo… cerca de duas centenas de rapazes rejubilavam alegrias, em gritarias de liberdades recreativas e de contentamentos meninos, nos lúdicos prazeres dos jogos de então, feitos de berlindes, bilhardas, bolas de trapos, arcos, etc …

Aquele novo mundo para mim… deixou-me entusiasmado e intimidado… entretanto, aproximou-se de nós o Fernando de Tabosa, um vizinho meu, já na 2ª classe… ficou por ali connosco… o que me inspirou confiança… até que o Professor Silva da 1º classe nos chamou… meia idade, alto, magro, bem parecido, de ar severo e autoritário, falou com a minha avó… eu fiquei… e ela partiu, dizendo-me… vais com o Fernando para casa..

O Professor Silva ordenou-me, ficas lá ao fundo na carteira ao lado do Henriques e do Euclides, e assim foi, até que me mudou, uma semana depois, lá para a frente, quando percebeu que eu já sabia ler e escrever e não só… graças a uma Santa Senhora, a Dona Amélia Santos Brito, professora reformada, amiga da minha avó, que vivia por cima da mercearia do Senhor Barbosa e que fez o favor, de me ensinar a 1ª e 2ª classes,  antes dos 7 anos.

Fica aqui um grande xi coração de amor e reconhecimento para essa Senhora extraordinária, que foi uma inesquecível amiga e quase uma outra mãe para mim; que esteja em paz!

Depois, foram os quatro anos de escola primária, que correram entre as salas de aula, primeiro pelas mãos do distinto Professor Silva, depois pelas da mui estimada professora Dona Nazaré Beja e, no fim, a 4ª classe , pelo severo e saudoso professor Otacílio.

Lado a lado com o ensino primeiro de elevadíssima eficácia e qualidade, extremamente exigente, lembro os recreios onde brincou e muito a minha infância, desvairada e alegremente, como a de todos os outros meninos, das gerações anteriores e posteriores à minha…

.. ora no pátio da escola, ora no terreiro das Carvalhas debaixo dos plátanos e das suas bugalhas, das quais fazíamos berlindes, à falta de melhor… e dos seus ramos fazíamos bilhardas e os paus das ditas… ora nos correres soltos na liberdade dos ventos que passavam… e no dar à manivela do engenho de tirar água do poço ali existente, que nos matava as sedes de Verão e as outras …

A Dona Nazaré Beja, com quem fiz a 2ª e 3ª classes, foi e é a melhor memória de todos os meus professores primários; mui digna e afectuosa, dedicada, inteligente, incansável no ensinar e, sobretudo, com capacidades pedagógicas de excepção… em tal tempo; foi de facto notável e marcou-me muito pelo seu saber e humanismo.

Lembro-me de andar eu na 3ª classe, quando um dia a D. Nazaré chegou irradiando felicidade no olhar, no sorrir e nas palavras, tanta que não se conteve e contou-nos, afinal éramos dos seus melhores amigos, embora crianças, como alunos seus de quase dois anos… e, confidenciou-nos que tinha encontrado o seu Príncipe Consorte e assim foi … pela primeira vez ouvi tal expressão e nunca mais a esqueci.

Quando as aulas terminavam à tarde, as meninas da Escola Feminina, mesmo ali em frente da Masculina, e do outro lado do largo … saíam ao mesmo tempo que nós e cruzávamo-nos, olhávamo-nos e gostávamo-nos; todas elas eram lindas, quais flores a desabrocharem em primaveras infantis, ficavam-me nelas os olhares e os pensares inocentes… e, ainda hoje as recordo, muitas delas, como eram então, nesses anos para todos nós inesquecíveis.

Tenho saudades e muitas desses tempos, porque todos nós eramos crianças de almas puras, cheias de sonhos, esperanças, ilusões e futuros… porque éramos felizes e muito, nas simplicidades daquelas vidas infantes e depois adolescentes.

Antiga Escola Primária Feminina de Mangualde

O meu futuro e de todos os outros meninos e meninas, zurões  puros como eu, começou ali nas Escolas Primárias de Mangualde, onde aprendemos letras, contas e cultura geral básica, mas vasta, e nos ensinaram ainda Portugal e o amor que lhe é devido,  enquanto Pátria e Nação,  o amor à sua História e Geografia,  e ainda os valores da Portugalidade,  no mundo imenso, que ao Mundo demos a conhecer.

O que fomos e somos,  as gerações que por lá passaram, enquanto pessoas, devemo-lo e muito às escolas primárias de Mangualde e aos seus mui dignos e competentes professores e a até aos nossos  colegas e amigos de então, que ficaram os nossos amigos de sempre, porque só eles foram e são de sempre!

de quando em quando, e nelas reviver parte dessa minha infância,  o que é um bálsamo para a alma e para  os anos que ainda estão aí pela frente, para além dos que a vida me foi somando e levando, e que vivem agora de memórias e recordações, tão simples quanto estas.

 

José Luiz da Costa e Sousa

Um Mangualdense