Todos os anos se realiza a “Cimeira dos Países Ibero Americanos”, rotativamente, em cada um dos 22 Países que a integram; em 98, coube a vez de Portugal organizar o evento, no Porto.

Todos os Chefes daqueles 22 Estados e 1ªs Damas, Ministros de Negócios Estrangeiros e Esposas estiveram presentes.

Não recordo outra situação, em que Portugal tenha recebido, em simultâneo, tantos e tão elevados dignatários estrangeiros.

O Protocolo de Estado do nosso MNE planeou e organizou a Cimeira, que decorreu na Casa da Alfândega, sita na Ribeira, Porto.

As Excelências e Consortes, num total de 84, mais assessores e outros, foram “colocados” em dois Hotéis de luxo e prestígio, mas sem a dimensão física conforme com a dignidade e condições exigidas para hospedarem tantas celebridades juntas; mas, não havia alternativas, só em Lisboa.

Sendo eu o Chefe da Segurança de Sexa o PR em funções, fui um observador privilegiado da Cimeira.

O 1º acto oficial foi uma Recepção de Boas Vindas, no salão do Hotel Tivoli, aos ilustres convidados.

O Presidente do País hospedeiro (o nosso) e a Primeira Dama fizeram as honras da casa, recebendo os ilustríssimos visitantes no diminuto patamar da escada de acesso ao salão para a recepção no 1º andar, onde desembocava também um elevador.

À hora marcada, desfasadas de minutos não cumpridos e em parte sobrepostas no tempo, as 84 Dignidades e acompanhantes ali confluíram, vindas escada acima e elevadores abaixo, “acotovelando-se” umas às outras na falta de espaço e na espera do cumprimento anfitrião, escoando-se depois salão dentro.

Entre outras, recordo a profundo incomodidade do Presidente do Chile, “ensandwichado” em “stand by” entre o elevador, os “body guards” e a insólita e comprimida “massa” de  Chefes de Estado.

Seguiu-se mais tarde um jantar de grande cerimónia no Salão Árabe do  Palácio da Bolsa no Porto; os distintos hóspedes partiram dos hotéis em autocarros, estacionados de portas abertas, fora das placas de protecção do hotel e, sob uma incómoda chuva miudinha que, insistente, não despegava.

Rei, Presidentes, Ministros e Damas foram chegando, trajados a rigor, surpresos pela chuva e sem guardas da dita, e entre manifestos desagrados, corridas e “gritinhos” de preocupados penteados, lá se iam baldeando autocarros adentro.

O embarque começava…

E eis que lá do fundo dum autocarro, chega a voz dum competente Dr. do Protocolo:-

“Alto, está quase cheio”

A esta voz, o meu amigo Subintendente Aires, responsável pela segurança da Cimeira, possante transmontano, de quem a lenda conta ter o pai abatido um asno autêntico à bofetada, substituiu-se ao vazio do protocolo externo do dito autocarro e, vai daí, atravessou-se na porta, ordenou à ilustre “Bicha” de Damas e Presidentes que, apressados pela chuva queriam entrar:-

“Alto”

À chuva e pasmados, os Presidentes de pronto obedeceram à voz autoritária e de alto comando do amigo Aires.

“Conte os lugares vazios !”, … berrou o Aires lá para dentro do autocarro e ouve-se a voz culta do doutor contar e dizer:-

“Seis”

Expedito, o Aires subiu o degrau do autocarro e, sobranceiro ao incrédulo grupo, imensa a mão (digna sucessora da “asnicida” paterna) de indicador espetado, contou as cabeças presidenciais e disse:-

“Oito

Imediata, a dúvida dum conflito diplomático ocorreu ao Exmo Dr. do Protocolo, lá dentro do autocarro; parou, pensou e atirou cá para fora:-

“Subintendente Aires, há aqui dentro Ministros dos NE´s, saem e vão para o outro autocarro, neste, só Presidentes!”

Passou de imediato à acção e toca de “expulsar os MNE´s e Esposas

A chuva incómoda, persistia…

Do lado de fora e atónita, a “bicha pirilau de Presidentes” vivia a impressionante e surrealista exibição do célebre improviso lusitano…e, mais uma vez, o Aires ordenou:-

“Fazem favor, chegam para trás e abrem alas”

Sexas os Chefes de Estado abriram alas, e os Ministros e Esposas saíram para o outro autocarro; finalmente o Aires comandou:-

“Podem entrar!”

Estes avançaram, mas, par a par de Presidente e Dama, o Aires trancou e destrancou a porta com o sólido braço, confirmando lá para dentro lugares disponíveis… andanças e entranças à parte, lá partimos para o jantar no Palácio da Bolsa.

No percurso olhei “invejoso” o amigo Aires, que ali tinha dado ordens e travado o passo a Presidentes, Ministros e Consortes, ao mesmo tempo que uma certa vergonha da desorganizada informalidade me deprimia e pensava, convicto, que os motoristas dos colectivos “Barraqueiro” não teriam feito melhor.

Chegados ao Palácio da Bolsa, abarrotado já de forças vivas da terra, Sexas foram agraciadas com a curiosa cerimónia da “entronização” na Confraria do Vinho do Porto, toda ela escarlate, de capas e chapéus medievais.

Terminada esta e em lusa e informal ordem ou desordem protocolar, subiu-se ao primeiro piso para jantar.

No percurso, Sexa o Presidente do Equador, idoso e limitado na locomoção, confrontado com a imensa escadaria, recuou e, perdido em contracorrente de atulhado corredor, procurava localizar um elevador; ouvi-o claramente, na sua justa indignação, comentar:- “Isto é terceiro Mundo”.

Mentalmente discordei, mas, factos, são factos…

O jantar chegou às sobremesas e Sexa o PR, embevecido na circunstância e exímio discursador, mais uma vez botou eloquências feitas de grandes saberes, foi ibero americanamente aplaudido, e seguido de insonsas e anónimas cantorias, por terceiros.

Corredor fora, vislumbrei esse extraordinário “sussurrador” portuense Pedro Abrunhosa, e por momentos temi, que o mesmo desatasse para ali a “rouquejar” aquela coisa anti Cavaquistão, que assim se estribilhava:-

“E agora que fazer? Talvez f.…, talvez… f.… .”

Mas não, por estranha razão, o intelectual melómano era apenas conviva; a minha dignidade nacional respirou de alívio.

Cansados e confusos com as cantorias, alguns Chefes de Estado retiraram-se para o hotel; vim à porta principal e, casualmente, testemunhei a indignação do Embaixador de Espanha em Portugal, que protestava furibundo contra o facto do Rei e Rainha de Espanha terem ali estado meia hora, à chuva e no passeio, a aguardar a vinda da sua viatura para o regresso.

Ao Presidente do Perú, na altura o Snr Fujimoro, aconteceu o mesmo, mas este esperou apenas cinco minutos; ferido no seu orgulho e zangadíssimo, perguntou onde é que estava a viatura estacionada, disseram-lhe que junto da Alfândega e, de imediato, deslocou-se com os seguranças para lá, atravessando a Ribeira a pé e à meia noite…

Lembro-me que o meu amigo Faria era o Chefe da equipa de Segurança do Snr. Fujimoro, mas, neste caso está inocente; a culpa foi da segurança sim, mas uns furos acima.

Considerando o elevado grau de ameaça pendente contra os Reis de Espanha e contra o Presidente do Perú, a segurança pessoal e a dignidade dos mesmos foram parcialmente postas em causa e ofendidas.

A nossa usual inconsciência geral não notou nada.

As reuniões da Cimeira foram rotina; o edifício da Alfândega, onde decorreram, é um casarão frio, despido de confortos e parco de casas de banho.

Num dos intervalos, o Presidente Fidel Castro e o Rei D. Juan Carlos conversavam animadamente no corredor, e entraram ambos no único e “comunal” WC disponível.

Entrei também e, ali estavam a Monarquia e a Comunarquia, lado a lado, falando e desapertando breguilhas, à mistura com humildes e “apertados” plebeus e proletários, todos agarradas às extremidades dos respectivos aparelhos urinários, aliviando águas, distintas na política e nas vidas, mas unidas humilde e intimamente no acto mictório canos abaixo!

O Protocolo do Estado esqueceu-se de “privatizar” as fisiologias do Rei e dos Presidentes, dos reinados e dos presididos.

Esquecimento…ou falta de pensamento. Enfim, informalidades… neste caso, urinárias.

Terminada a cimeira, os ilustres hóspedes regressaram a penates, certamente impressionados com as informais protocolaridades lusas.

José Luís da Costa Sousa.

À data responsável pela segurança duma A. E. presente.