A Seka, menina em gíria local, Zurifa de seu nome, muçulmana e Bósnia, foi e é uma dessas mulheres heroínas de insuspeitas e estoicas sobrevivências à guerra e aos golpes constantes que a vida lhe moveu, por desconhecidas razões ou maldades, de que só Deus saberá os porquês.

Conhecia-a na chamada Casa da ONU (UN House) em Sarajevo, onde trabalhei uns anos; fazia limpezas, isto, depois da guerra, antes, era bancária e tinha negócios; a guerra levou-lhe tudo da vida, e deixou-a de vassoura e balde na mão, emprego este, que considerava uma bênção!

Um dia encontrei-a em desesperos copiosamente carpidos, a filha tinha perdido um bebé, seria o seu primeiro neto, que não foi, mas, senti nela e naquelas lágrimas, gritos duma alma extravasando outras mágoas e outras dores passadas, bem maiores.
Cinquenta anos, Senhora dum rosto soberbo, belo e determinado, alta e elegante, de sorrir e gargalhar espantosos, fortes e cristalinos, sinceros e cativantes, mesmo de balde na mão, mas era de humores por vezes azedos, que a faziam temidamente respeitada!
Foi-me contando coisas da sua vida de descendências turco otomanas, nascida na Sérvia em Novi Pazar e, circunstancialmente, por erros do pai, nasceu a meias com um irmão de outra senhora, e daí o imediato divórcio da mãe; havia já duas irmãs e um irmão do mesmo pai; pouco depois a mãe casou com um Turco, foi para Istanbul e levou os filhos.
Cresceu em Istanbul, lá foi à escola, e por lá foi violentada e traumatizada antes dos dez anos; para a salvaguardar a mãe trouxe-a mais um irmão para Sarajevo, ficou a viver com o pai … pai esse viciado em álcoois e em agressões diárias à nova esposa.
Dois anos depois, a mãe teve de a retirar e ao irmão mais velho de casa do pai, para uma outra casa, onde viveram sozinhos com 12 e 14 anos, e lá sobreviveram juntos, amparando-se mutuamente;

Um dia, de visita a Sarajevo, a mãe travou-se de razões com o pai, o irmão interpôs-se,o pai deu-lhe dois tiros, e esteve dois anos entre a morte a vida, e assim, de horror em horror, de infelicidade em infelicidade, fez-se criança e adolescente!
Apaixonou-se aos 17 anos, casou e foi para casa dos pais do marido, nos conformes da tradição Bósnia… teve duas filhas… foi feliz … recorda com muito amor e carinho esse período que terminou, abruptamente, com a chegada da guerra, em Abril de 92.
Frente à casa da Seka vivia a família do marido e, entre eles, o Fudo, de quem fui grande amigo; um ano antes da guerra na Bósnia, em 91, o Fudo deixou de trabalhar e sentou-se, definitivo, em casa, a mais das vezes na varanda, numa de comer, beber e nada fazer… e, aos vizinhos, passantes para o trabalho, dizia-lhes… parem, gozem a vida, vem aí a guerra!

Os vizinhos incrédulos e em dúvidas da sua boa mente, perguntavam-lhe, guerra, qual guerra ?

Achavam que estava maluco! Mas não, ele sabia bem o que dizia… integrava uma milícia em formação, os Zeleni Beret, Boinas Verdes em português; esses sabiam da guerra que vinha lá, imposta por potências exteriores.
Andava então a Seka, feliz, a construir com o marido uma casa de fim de semana, uma wikendiza, como eles dizem… e o Fudo só lhes dizia, parem com isso e juntem-se a mim!
A Seka e o marido riam-se, dizendo-se mutuamente, que o Fudo estava cada vez pior!  Inesperado, em Abril de 92, Fudo confirmou-se plenamente, os sérvios, depois de muito provocados pelos muçulmanos, bombardearam pela 1ª vez Sarajevo e, inacreditavelmente, as duas primeiras granadas de artilharia caíram, uma na casa e outra no quintal da Seka, as duas primeiras granadas !!

A guerra correu de 92 a 95 na Bósnia… o marido, o pai, um meio irmão e outro irmão foram para a guerra… e a Seka ficou-se sozinha, com as duas filhas de 4 e 7 anos, os sogros doentes, a casa semidestruída… Sarajevo cercado pelos sérvios… e, toda a tragédia da guerra se abateu, num repente, sobre a cidade e seus habitantes… uma cidade onde antes habitava a felicidade; nunca conheci povo mais feliz antes da guerra e, mais infeliz, durante e depois desta!

O dantesco inferno da guerra com todos os seus horrores… inimagináveis por quem nunca as viveu no real, instalou-se, omnipresente e omnicriminoso… e, em menos de nadas esgotaram-se supermercados, o dinheiro deixou de valer, a electricidade, a água e o gás deixaram de correr, os bancos tornaram-se inúteis… os empregos desapareceram, os homens partiram para a guerra…

E as mulheres, como sempre, ficaram sós na rectaguarda, mergulhadas noutra guerra, quiçá mais feroz e desumana, a garantirem sobrevivências próprias, das suas crianças, velhos, doentes… etc… e sem nada… vazias de tudo, excepto a grandeza e a fortaleza incomensuráveis da natureza feminina… natureza esta que teve artes de fazer brotar pão, calores, vida e tudo o mais… de chãos vazios, diariamente bombardeados, e de ajudas humanitárias, de mais vozes que nozes; de facto, só as mulheres e as crianças foram e são as grandes heroínas e vítimas, desconhecidas, de todas as guerras.
Quanto aos homens, irresponsáveis e inconscientes, como sempre, esses, guerrearam-se heroicamente entre si, em belicismos ferozes e assassinos combates, perseguindo ideias de conteúdos nulos, buscando novos poderes, novas fronteiras, novos donos, novas independências, utopias e outras quimeras… falavam de futuros radiosos depois da guerra… dizia o seu Presidente Ali Izetbegovic, o fabricante da guerra, a mando e pago pelos interesses dos EUA e da Alemanha, que no fim todos iriam comer com “Colheres de Ouro, zlatke kaske”, hoje, poucos têm trabalho ou de comer, mas as novas elites, essas comem, efectivamente, em colheres de ouro, como em todas as outras guerras.
Durante a guerra em Sarajevo, entre horrores de bombardeamentos diários, os mortos, as lutas pela sobrevivência nos seus mil e um aspectos, um dia a Seka estava na fila do pão, numa padaria, 16Fev93, quando rebentou ali mesmo uma carga explosiva, lá colocada pelos próprios muçulmanos e serviços secretos internacionais, para diabolizarem e acusarem os sérvios de tal crime e justificarem a intervenção da NATO contra os Sérvios; morreram dezasseis pessoas e a Seka ficou com uma perna esfacelada; quiseram-lha amputar, mas, por milagre, escapou de tal destino.
Entretanto a guerra, só num dia, assassinou-lhe o pai e um meio irmão e depois mais uma irmã e um irmão; acabada a guerra, pouco depois, o seu marido foi assassinado.
Em três anos a guerra levou-lhe a família toda; ficou com duas filhinhas de 7 e 10 anos, casa semidestruída, e o sogro inválido, e sem nada mais, excepto o vazio de tudo na vida.
Feita a paz, a Bósnia inicia a sua demanda das tais colheres de ouro, prometidas ao Povo pelo seu Presidente Izetbegovic, um herói nacional e Internacional, pela sua entrega da Bósnia ao Ocidente.

E este, o povo, em lutos pesados e chorados dos seus 80 mil mortos em três anos, de mãos esquálidas e vazias, iniciou a sua própria demanda pela sobrevivência, nos trabalhos da terra, negociozitos mixurucas, empregos mínimos e assim está a aguardar, há 25 anos, a promessa mentirosa da entrada na U E. E, nessa demanda, dizia a Seka, quantas noites as filhas lhe choravam desalmadasn fomes… que ela sufocava em lágrimas e abraços, desesperada de nada ter para lhes dar… a não ser copos de água, para lhes enganar os estômagos vazios e dormirem.

Quando a conheci em 2004, nas limpezas da Casa da ONU em Sarajevo, tinha já recuperado parte da casa, e o ordenado dava-lhe para o sustento dela e das filhas, comia apenas “kiflas”(um minúsculo pão de leite, o mais barato) e bebia cafés… nada mais… tinha perdido o hábito de comer! Conheci muitas outras senhoras na Bósnia, nesta mesma situação, comiam nadas para não morrerem. Coisas da guerra.

Foi criando as filhas, casaram, e delas tem uma neta e um neto; tendo-lhe eu alugado um andar da casa, quando estive por lá, apoiei-a na medida do possível; sem um único avô vivo, passei eu a ser o Deda/avô afectivo da netinha; foi a minha alegria nos anos que por lá estive; hoje é uma linda adolescente !

Quanto à Seka, continua o calvário da sua vida, agora com uma doença daquelas que pouca esperança deixa. Toda a sua vida, agora nos sessenta, foi uma marcha de tragédias em tragédias pessoais; Deus esqueceu-a…. aliás, nunca soube que existia… Escrevi estas linhas para, na história da Seka, evocar e homenagear os milhões de mulheres desconhecidas, que morrem vezes sem conta nas guerras dos Homens; mas é apenas mais uma história de uma Mulher Coragem, uma Mulher de Ferro, uma Mulher Amor, uma Mulher Sobrevivência, como são quase todas as Mulheres, na guerra e na paz.
As guerras das Mulheres são também estas, feitas de sobrevivência às guerras feitas de e pela irracionalidade criminosa dos homens, no seu incessante guerrearem-se, por ambições de mais poderes seus ou de terceiras partes, tudo mascarado com ideias bonitas por fora e vazias por dentro, fantasias, ideais inventados para enganarem povos inteiros, por eles embriagados e pagos, nas guerras, com morte e medalhas.
Mas, aos homens, quem lhes fica sempre a garantir as vidas e os futuros nas rectaguardas das guerras são Mulheres como esta, mulheres feitas força de vontade, amor pela família, determinação, capacidade de sofrimento, força, abnegadas, discretas, anónimas… superiores.

São elas, as Mulheres, as verdadeiras heroínas desta Vida e das guerras e não os Homens, que orgulhosos e inconscientes das maldades das suas guerras, fábricas de mortes sem fim, desfilam incontáveis paradas militares, carregados de condecorações até aos pés… em sinal e exibições de coragens e heroicidades, que foram a mais das vezes apenas destruições e mortandades, geradoras de mundos de infelicidades.
Escrito em nome do meu máximo respeito e infinita admiração pelas Mulheres!

José Luís da Costa Sousa

Superintendente da PSP (então ao serviço da ONU e da EU, intervaladamente)