Mangualde e a ilustre família de Pedro Álvares Cabral tiveram uma longa convivência histórica, que se iniciou no século XIV e findou no reinado de Filipe II de Espanha e I de Portugal

Pedro Álvares Cabral, o insigne Capitão Navegador que descobriu as Terras de Vera  Cruz, Brasil, a caminho da Índia, foi Alcaide-Mor das terras do Concelho de Azurara da Beira, Mangualde, assim como muitos dos seus antecessores e sucessores de família o foram.

Em 13 de Dezembro de 1379, o Rei D. Fernando e a Rainha D. Leonor Teles, fazem mercê da Quinta de Santo André, no limite de Azurara da Beira, Mangualde, a Diogo Afonso de Figueiredo, cuja filha casou com Álvaro Gil Cabral, (bis) avô de Pedro Álvares Cabral, Alcaide-Mor da Guarda e Senhor do Castelo de Belmonte; por via deste casamento, Álvaro Gil Cabral, recebeu a mercê da  Quinta de St. André.

Quando o Rei D. Fernando morreu sem sucessores directos, o Rei de Castela, D. João, foi o principal pretendente ao trono de Portugal, em oposição a D. João, Mestre de Aviz; a maioria da alta e média nobreza esteve ao lado de D. João de Castela, mas o Mestre de Aviz teve o apoio dos Procuradores de Concelho, burgueses e de membros do Clero e da média Nobreza.

Neste contexto, D. João de Castela exige a Álvaro Gil Cabral, bisavô de Pedro Álvares Cabral, a entrega do Castelo da Guarda, de que este era Alcaide-Mor, mas este nobre, recusou e manteve-se firme e irredutível ao lado do Mestre de Aviz, por ele batalhando até completa vitória contra D. João de Castela.

Como recompensa, o Mestre de Aviz, ainda Regedor e Defensor do Reino, em 1384, faz a doação “de juro e de herdade”, a Álvaro Gil Cabral, das terras de Azurara da Beira, bem como das de Valhelhas, Manteigas e Tavares.

Álvaro Gil Cabral foi dos fidalgos que assinou o auto das Cortes de Coimbra, que proclamaram o Mestre de Aviz, Rei de Portugal.

Os inimigos de Álvaro Gil Cabral roubaram-lhe a carta da doação das terras de Azurara da Beira, quando este ia a caminho de Torres Vedras para se encontrar com El Rei D. João I, mas este renovou-lha e os seus sucessores, D. Duarte e D. Afonso V confirmaram tal doação.

Dali em diante, os sucessores de Álvaro Gil Cabral foram os Senhores e Alcaides das terras da Coroa do Concelho de Azurara da Beira, Mangualde.

Em consequência destas doações régias, a família dos Cabrais ficou com a posse das terras de S. Cosmado e da Quinta de S. Cosmado, designada esta última também por S. Cosmadinho, mais as terras da Quinta de St. André, Valhelhas, Manteigas e Tavares.

A família dos Cabrais tinha vivenda, celeiros e arrecadações na Quinta de S. Cosmado, então a um quilómetro de Mangualde, hoje designada como Bairro de S. João.

Foi e é em S. Cosmado e na Quinta de S. Cosmado que a minha família paterna nasceu, viveu e ainda vivemos, cresci a ouvir falar da Casa de Belmonte, à qual a minha avó ainda tinha de pagar em géneros, anualmente, uns valores simbólicos, que ela chamava de foro a Belmonte, tipo alqueires de milho…etc.

Em S. Cosmado ainda hoje existe uma casa que tinha o Brasão de Armas dos Cabrais, mas que terá sido levado para parte incerta, e que foi, seguramente, uma das vivendas onde aquela histórica família se instalava, quando estavam no Concelho de Mangualde.

Na Quinta de S. Cosmado, na fonte pública e respectivos tanques de lavagem das roupas, ainda hoje está colocado o Brasão de Armas dos Cabrais, em granito, no  frontão, mesmo por cima duma porta de acesso aos reservatórios de água, ao lado esquerdo e um pouco atrás do fontenário.

Esta família dos Cabrais, Senhores do Castelo de Belmonte, Alcaides Mor da Guarda e do Concelho de Azurara da Beira, defenderam sempre, intransigentemente, todos os direitos e prerrogativas que tinham sobre as terras de Azurara, contra as prepotências de certos fidalgos locais, principalmente contra as célebres “tomadias” e “maladias”, ou seja, a apreensão de géneros e terras sem justa causa, apenas por uso e costume feudal, como por exemplo o fazia João Lourenço, Alcaide Mor da Guarda, mas que tinha uma quinta em Cães de Baixo, e também o fidalgo João Afonso de S. Cosmado, que fazia “tomadias” naquelas localidades e em Vila Garcia, Tabosa, Fagilde, Ançada, Lobelhe, Pedreles, consistindo tais tomadias em “levar” daquelas povoações pão, vinho, carnes, roupas, palha e diversos, tomadas aos vilões, servos da gleba.

Por acção da Família dos Cabrais, em particular Fernão Álvares Cabral, tanto D. João I, como D. Duarte e D. Afonso V, proibiram a todos os fidalgos e escudeiros, a práctica de tais actos nas terras de Azurara da Beira.

A Fernão Álvares Cabral sucedeu o seu filho Fernão Cabral, pai de Pedro Álvares Cabral, que exerceu as funções de Corregedor, ou Administrador da Justiça na  Beira, tendo-se tornado mui conhecido e temido, pela extrema dureza da sua Justiça.

Fernão Cabral foi criado na casa do Infante D. Henrique e exerceu as funções de Corregedor da Beira no decurso de três reinados, D. Afonso V, D. João II e D. Manuel.

Fernão Cabral foi um Corregedor probo e muito recto, mas excedia-se na severidade das penas aplicadas, e enfrentou muitas acusações oficiais por via desses excessos mas, ultrapassou-as sempre.

Fernão Cabral como recompensa dos bons serviços prestados à Coroa, recebeu apenas as mercês da conversão em hereditárias da Alcaidaria vitalícia de Belmonte e do Padroado da Igreja de S. Jião, ou S. Julião de Azurara, Mangualde, actual Igreja Matriz.

Grande foi pois, o prestígio e predomínio dos Cabrais sobre as terras e populações do concelho de Mangualde.

Fernão Cabral foi um homem muito particular, não só pela sua personalidade férrea, dura, severa, implacável no exercício e aplicação da Justiça, mas também pela sua presença física, pois era senhor duma enorme e avantajada estatura, que lhe granjeou o nome do “Gigante das Beiras”.

Nada diz mais e melhor da sua severidade na aplicação da Justiça, do que ter ele alterado o desenho do Brasão de Armas da família, passando dum campo com duas idílicas cabras em vestimentas de  púrpura, passantes num campo de prata, para uma prensa com fuso ao alto, aberto em rosca sem fim, e o prato superior ou adufa, como se fora um copiador comercial;  a tradição diz que terá supliciado um seu familiar numa prensa destas, por razões de Justiça e, terá sido essa a razão da alteração do Brasão, como mensagem e aviso aos seus clientes da Justiça no Concelho de Azurara da Beira e não só.

Foi este o Brasão que mandou colocar no frontão da Fonte da Quinta de S. Cosmado, onde ainda hoje se pode visitar,  e na Igreja de S. Julião de Mangualde, no exterior, na parede virada a sul e ainda no pórtico da tulha que tinha na Quinta de S. Cosmado e que já não existe.

Pedro Álvares Cabral, filho de Fernão Cabral, e descobridor do Brasil em 1500, nasceu em Belmonte, em 1467/8, e ali viveu a sua meninice e parte da adolescência,  depois entrou como moço fidalgo para a corte de D. João II.

Na sua infância andou naturalmente com o pai por estes seus domínios da Beira, Mangualde em particular.

Pedro Álvares Cabral continuou ligado a Mangualde, tal como os seus antecessores, tendo sido também Alcaide-Mor de Azurara, conforme é apontado por todos os historiadores, e no-lo indica o livro “Retratos e Elogios dos Varões e Donas” , publicado em Lisboa em 1817, que apresenta um retrato com a seguinte inscrição; – “Pedro Álvares Cabral, Senhor de Belmonte, Descobridor do Brasil e Alcaide Mor de Azurara”, foto ao alto.

Regressado da sua histórica viagem que descobriu o Brasil e continuou para a Índia, o Rei D. Manuel teve para com ele um comportamento injusto e incompreensível, e por isso, retirou-se para Santarém, desgostoso com tal injustiça, onde se isolou até à morte, mas usou sempre o título de Alcaide Mor de Azurara da Beira.

Os seus sucessores continuaram na posse da Alcaidaria de Azurara Beira, até à ocupação da Coroa Portuguesa, pelos Filipes de Espanha.

Esta família dos Cabrais esteve presente na Batalha de Alcácer Quibir, na pessoa de Fernando Cabral, que foi um dos fidalgos cativos juntamente com o Infante D. Fernando, o Santo.

O Padre António de Carvalho, na sua Corografia de 1708, relata ainda que um descendente desta nobre família dos Cabrais, Nuno Fernando Cabral, se recusou a ir tomar parte no beija mão dos nobres portugueses a Filipe II de Espanha,  depois destes terem usurpado a Coroa de Portugal, protestando contra a perda da independência de Portugal.

Este facto fez com que, por retaliação, Filipe II de Espanha e I de Portugal, despojasse a família dos Cabrais, do Senhoria das Terras de Azurara da Beira; e assim se findou a influência dos Cabrais no Concelho de Mangualde, consequência de um acto de coragem e elevado patriotismo de um dos seus membros, tal como já o tinham feito em situações anteriores, na crise de 1385 e em 1580; foi um acto que dignificou profundamente a família dos Cabrais e Mangualde, e da qual todos os Mangualdenses se orgulharam certamente, e ainda hoje se devem orgulhar.

 

José Luiz da Costa Sousa

Um Mangualdense

 

Bibliografia, “Concelho de Mangualde”, “Subsídios para a História de Portugal”, de Valentin da Silva