A cidade de Mangualde, a N. S. do Castelo e, em seu redor, muitos dos espaços rurais onde, nos anos 50 e 60, se vivia conforme este texto descreve.
O meu tempo de menino e moço, tal como o de todos nós, foi correndo e transcorrendo sempre atrás de cada vez mais e mais tempos, futuros, que fizeram de mim hoje, homem já de muitos e velhos tempos, cheios de melancolias e saudades desses meus primeiros tempos, dos idos de 50 e 60, que me dá gosto recordar, pois, os velhos vivem de memórias.
Vivi ali na Quinta de S. Cosmado, hoje B. de S. João, à época fronteira entre a ruralidade pura do mundo aldeão e agrícola e o urbanismo já evoluído da então, bela e próspera, vila de Mangualde.
O meu mundo de criança beirã, rústica e aldeã, dos anos 50 e 60, era tão diferente do mundo de hoje, tão diferente, que vale a pena recordá-lo em breves e simples palavras, como era e o vivi, foi assim :
Caída a noite na aldeia, a escuridão total descia ao povoado e arredores, apenas suavizada pelo Luar, quando o havia; lá dentro das nossas casas, acendiam-se então, no raspar dos fósforos, os candeeiros a petróleo, de latão ou vidro, com ou sem chaminés de vidro também, ou ainda os gasómetros, únicas, tremeluzentes e fumegantes iluminações, dessas nossas longas noites; a electricidade ainda não tinha chegado à aldeia, veio mais tarde, em 62.
Acendiam-se também as lareiras ou fogões, alimentada/os a caruma e cavacas de pinheiro, onde as velhinhas e negras panelas de ferro de três pés, ou as de barro nas trempes, coziam as batatas e as couves, ceia de todos nós, por vezes, apenas um caldo bem quente.
Nos frios Invernos, a família inteira, sentava-se à volta da lareira, em vulgares bancos de pinho, e ali se aquecia do corpo e da alma, todos juntinhos e aconchegados naqueles benfazejos lumes e calores, enquanto a mãe da família se afadigava e apurava, nos humildes temperos e cozinhados e depois, já prontos, ali mesmo à lareira, botava a janta numa terrina grande de onde a família comia directamente a garfo, ou em pratos, conforme as vidas de cada um. Acabada a refeição, esgotadas as parcas palavras, ou conversas dos trabalhos da terra para o dia seguinte, ou de outras coisas da vida e da aldeia, pouco mais tempo por ali ficávamos e adormeciam-se os cansados corpos nas camas de ferro ou de madeira de castanho, em uso então, e nos duros colchões, cheios a palha centeia, todos os anos mudada, pela Páscoa.
O dia acordava no cantar dos galos, e nos espreitares envergonhados do sol nascente ali por trás da Nossa Senhora do Castelo, e no levantar da cama, no mata bichar dos homens, que acalmavam o cujo bicho, a golpes de aguardentes caseiras e figos ou pêssegos secos; para os miúdos como eu, uma boa tigela de caldo do dia anterior, ou uma gemada de ovos de vez em quando e, para a minha avó, a sua inevitável malga de café de mistura, que sorvia gostosamente, como se fosse a sua vida, acompanhado com uma fatia de broa, umas azeitonas e lá saímos para as lides dos campos, ainda antes do sol ser dia. A aldeia vivia quase toda das subsistências da terra; na Primavera e Verão, alvorecíamos a caminho, ou já nas hortas ou fazendas de cada um; as mais velhitas das crianças iam de lá directas para a escola; sem idade escolar ainda, eu ficava-me por ali num recanto do campo, debaixo duma árvore, à sombra, a tomar conta de irmãos mais novos, bebés ainda e que, deitados num toldo ou saca no chão de terra nua, dormiam em sossegos da natureza pura, e quando choravam, atento que estava eu nos meus cinco e seis anitos, metia-lhes na boca uma “boneca” de açúcar, que a minha mãe preparava, com um pano branco, açúcar amarelo e um atilho, como se fosse uma chupeta, calavam-se, adormeciam, acordavam, choravam, mais boneca de açúcar e o dia de trabalho lá se ia consumindo; regressávamos a casa no cair da noite, e repetia-se o ciclo da vida aldeã… acendiam-se os candeeiros a petróleo e mais a lareira ou fogão a lenha mas, antes havia que ir buscar água à fonte, pois não havia águas canalizadas, vieram já bem depois da electricidade.
A água para casa era então a da fonte pública, que as mulheres da família iam buscar, em cântaros de latão ou barro, que traziam à cabeça sobre rodilhas, e depois colocavam na cantareira, ou debaixo da pia lava louças, e dali era usada para cozinhar, lavar as louças, deitar nos lavatórios para lavar caras e mãos ou em bacias para lavar os pés antes da deita; não havia casas de banho, apenas isto e sabão azul; o resto era a imaginação e a natureza. Não havia rádios, nem televisão, nem livros, só mesmo a casa e as suas facilidades mais elementares para dormir, comer e estar e as enxadas, ancinhos, forquilhas, manguais, sacholas, máquinas de enxofrar e curar, capoeiras, coelheiras, pátio e loja do porco e as terras de cada um, o trabalho agrícola e pouco mais; éramos quase todos de somenos ou pouco mais teres e haveres, excepto as terras próprias ou de renda, as alfaias agrícolas, os nossos braços, e tanto nos bastava, não havia subsídios, nem rendimentos mínimos, nada.
Os anos iam correndo assim de cavas ou lavras da terra em novas cavas ou lavras, de preparares e estrumares dessas terras em novos preparares e estrumares, de sementeira em sementeira, de colheitas em colheitas e, entrementes, eram as sachas, regas, mondas, curas, o malhar nas lajes dos centeios, das cevadas, feijões e milho, os trabalhos sem fim nas vinhas e videiras e as vindimas, o calcar e tirar do vinho e da aguardente do cachiço, o varejar e a apanha da azeitona e o fazer do azeite, quem o tinha, o cozer da broa, semana sim, semana não, no forno do povo, etc… e era esta a vida incansável e o mundo do camponês e dos seus filhos. A terra dava quase tudo o que o beirão precisava para subsistir, realizava ainda algum dinheirito com trabalhos rogados ao dia fora, ou com a venda dos leitões uma vez por ano, e dos ovos, galinhas, coelhos, hortaliças, vinho, etc… para se pagarem os fiados feitos ao longo do ano nas mercearias, das compras a crédito daquilo que o campo não produzia, açúcar, café, arroz, massas, etc…; todas as lojas e mercearias tinham um livro de fiados, e todos os clientes tinham lá a sua folha e registos das compras; havia ainda que comprar botas, chinelos e tamancos, louças, tecidos para roupas, etc… quase sempre nas feiras quinzenais em Mangualde, aí era tudo a pronto.
Trabalhava-se de sol a sol, com uma pausa ao domingo, dia da santa missa de manhã e, depois à tarde, finalmente um descanso, os homens iam para a taberna beberem uns vinhitos a copos de três ou de quartilho, por vezes acompanhados dumas sardinhas fritas, requeijão, ou mesmo queijo entremeada/os num papo seco, ou pão de segunda, ouviam os relatos de futebol nos rádios da tasca, jogavam ao fito, à sueca, à bisca, por vezes à pancada, vinha a GNR, impunham a ordem só pela presença, ninguém batia na GNR… havia lei e ordem.
As mulheres aproveitavam o descanso dominical para fazerem uma limpeza geral à casa, darem um pouco à língua e porem os mexericos em dia, nos lavadouros colectivos de roupa lá no tanque público da fonte. Não havia electrodomésticos.
A garotado, os rapazes, nós tínhamos a tarde de domingo para brincarmos, jogar com bolas de trapos, não havia outras, andar com os arcos puxados com as ganchas, ou simples jogos de berlindes, bilhardas, polícias e ladrões, castelos, quatro cantinhos, crikas, etc…. ou ainda correr matas fora, subir aos pinheiros, atirar pedras aos canecos da resina, ir comer frutas alheias nas costas dos donos, ir ao rio no Verão, às matinés do Cine Teatro de Mangualde na geral, etc…. eram brincadeiras ou diversões inocentes, saudáveis, quase todas meras destrezas físicas, tantas que nunca nos aborrecíamos… e á noite, só queríamos mesmo era a cama, nada mais. Ao longo do ano, estas rotinas eram quebradas, apenas e só, pelas muitas festividades religiosas e profanas, todas elas eram alegria popular e ou devoção, vida e excitação e eram, sobretudo, o alimento das almas, dos espíritos e da força e vontade de viver e enfrentar o dia a dia, mês a mês e ano a ano do povo simples e humilde.
Os calendários religiosos e profanos traziam ao longo do ano, o dia de Reis, o Carnaval, o Dia de Ramos, a Páscoa, a Pascoela, o 13 de Maio, o Santo António, o S. João, o S. Pedro, as mil uma romarias do Concelho, as festas das aldeias, todas tinham a sua, a Nossa Senhora do Castelo, a Feira dos Santos, o Dia dos Defuntos e de Todos os Santos, o Natal e o Ano Novo.
Todas estas festas e celebrações religiosas e profanas morreram ou desfaleceram, assassinadas pelo Covírus, neste ano de 2020, para sempre, embora as inocência humanas pensem que não, mas anda por aí uma Nova Ordem Mundial, incompatível com estas tradições; espero que prevaleça a coragem e o bom senso do povo português e que a sua História e cultura permaneça intocada. Acredito que sim.
Hoje em dia, com os novos tempos, as evoluções de todo o tipo e os novos poderes autárquicos, estes bem mais eficazes e dinâmicos do que foram noutros tempos, todos temos tudo, tanto que nem sequer podemos imaginar os tempos que descrevi mas, mesmo assim,éramos felizes, ninguém sente falta daquilo que nunca teve; em contrapartida, acho eu, hoje há excessos de tudo, demasias essas pouco compatíveis com uma felicidade duradoura, quecarece de alguns desafios e obstáculos, e que se realiza mais nas vidas comedidas, do que nas excessivas; é só olhar à volta.
Mas é a inevitável marcha do progresso e da História, buscando sempre mais e melhor vida para os povos em geral; espero que assim continue, e saibamos parar lá onde reside a virtude, e que os conturbados tempos de perspectivas negras e imprevisíveis, que todos vivemos hoje, face às tectónicas mudanças político sociais globais, em curso no mundo, sejam ultrapassados pelo bom senso de todos e que as vidas e tradições e a cultura e a religião do povo português, continuem a ser o que sempre foram, porque sem elas, deixamos de ser portugueses, perderemos a nossa identidade nacional, e seremos apenas e só, enquanto Nação, como disse Almeida Garret, no seu Frei Luís de Sousa, “Ninguém”.
Artigo do Mangualdense, José Luiz Costa Sousa