Bairro de S. João, antiga Quinta de S. Cosmado, 
Brasão de Armas da família de Pedro Álvares Cabral,
há quase 600 anos a encimar a porta do depósito de águas da fonte pública; foto actual.

 

A minha pequena, humilde e saudosa aldeia, já não existe, é hoje o moderno Bairro de S. João, há muito parte da área urbana de Mangualde.

Até à década de 1960 era, simplesmente, a Quinta de S. Cosmado, separada de Mangualde por vastas matas de pinheiros, uns bravos, muitos, outros mansos, os dos pinhões, poucos, e carvalhos, castanheiros e mimosas, estas muitas, cheias de cor e perfumes de primaveras mil, radiosamente amarelas como o sol e, estava rodeada de belas e férteis quintas agrícolas, como a do Snr. João Cabral, a do Snr. Adelino Amaral, etc… e outras fazendas e hortas, todas primorosa e vaidosamente cultivadas, como se fossem jardins, ora prenhes de frutos da terra, ora em pausas sazonais.

Ao acaso dos caprichos das já longínquas e desvanecidas memórias minhas, sou assaltado por imagens das rotinas do dia a dia da Quinta de S. Cosmado, desses outros tempos; inesquecíveis, vejo-as e ouço-as como se fossem hoje e agora; gostei muito de ter vivido a “minha” pequenina aldeia.

Tudo começava no cantar dos galos, em alvoroçados e esganiçados despertares e madrugares ao nascer do sol, e logo as casas, estremunhadas, ganhavam vida nas pressas das mulheres a prepararem os “mata bichos” dos seus homens que iam trabalhar, e uns “comes” ou umas “gemadas” para as crianças irem para as escolas, depois, manhã muito cedo ainda, chegava a “Ti” Maria da Lage, a padeira, ligeira e expedita, ruas fora, indo de casa em casa, saco imenso às costas, quase a arrastar o chão, cheio de pão de trigo, papo secos e pães de 2ª e 1ª, pregões altissonantes atirados ao ar, fazendo-se anunciar de lá bem longe…

… a seguir, passava por ali, frente à minha casa, mesmo na beira do caminho para o cemitério, e sempre à mesma hora, como se fosse um relógio, o Snr Barroso, GNR, espingarda Mauser ao ombro, mui digno, sério, de avaras palavras e aprumadíssimo, dando sempre os “Bons dias Snra Maria” à minha avó, ia a caminho do Posto, sito onde hoje é o Centro Paroquial, pai de três dos meus melhores amigos de sempre, o Toninho, o Fernando e o Carlos do Barroso e, entretanto, estridentemente, às oito em ponto, soava o apitar da máquina da serração do Duarte Carvalho, marcando o ritmo dos trabalhos e da vida na fábrica e na aldeia,   nos campos, tudo tinha já começado no alvorar do astro rei …

… mais tarde, a meio da manhã, chegava a “sardinheira”, a “mulata”, sem ser tal, era apenas muito trigueira e arrebitada de humores, rosto picado das bexigas, coisa vinda de miúda, de palavra fácil e brejeira, caixa de madeira cheia de pescado sortido à cabeça, apoiada  na rodilha, em equilíbrios de espanto e de ver para crer, apregoando carapaus, chicharros, fanecas e sardinhas às unidades, ao peso ou às dúzias, meias dúzias e aos quarteirões, por uns simples tostões, tudo acabado de pescar e de chegar directo da Figueira da Foz, fresco como nunca mais se viu e nem hoje se sonha ou imagina… tudo agora é congelado, higienizado, embalado…

… manhã ainda, na sua flamejante, ruidosa e vermelha mota, uma Moton, passava o Snr Joaquim Guarda Rios, a caminho do seu mister pelos rios do concelho, senhor dotado de forte carácter e personalidade, muito sério, marido da simpatiquíssima D. Teresa, pais do meu inesquecível amigo de adolescência, o Manelito, verdadeiro hino de alegria à vida e à juventude, que o destino vitimou num desastre de avião da Força Aérea, no dia em que se brevetou na Base Aérea de S. Jacinto em 1969, caindo ali para os lados de S. Romão, Serra da Estrela, nos seus vinte anos; que vivas para sempre em paz lá nessas outras vidas, para onde tão jovem te partistes, inesquecível amigo!

Os homens da aldeia às oito já estavam todos a trabalhar, os cavadores de enxada desde o nascer do sol, para si próprios ou rogados ao dia fora, a quinze escudos a jorna, outros na Serração do Duarte Carvalho, como o Tóino Correia, amigo e vizinho meu, que o coração traiçoeiro há anos levou, e os outros, serralheiros, mecânicos, pedreiros, caiadores, etc… começavam pelas oito ou sete da manhã…ou mais cedo…

…, mas todos, sem excepção, tinham também as suas terras, próprias ou arrendadas, onde tratavam das batatas, milho para o pão, feijão, couves e outros hortícolas, trabalhadas fora de horas, por toda a família, para subsistências ou ajudas da mesma, conseguidas á custa de muito labor, suor, sacrifícios e, sobretudo, de muita dignidade e auto estima de cada um, para não viverem de mãos estendidas às caridades do Estado ou de terceiros.

As gentes das aldeias desses tempos eram simples e humildes sim, de parcos teres, haveres e saberes, excepto os agrícolas e outros de ofícios vários feitos e eram, por boa educação, mui respeitosos dos senhores mais altos na vida, a quem cumprimentavam de chapéu na mão mas, nessa sua simplicidade e correcção de maneiras, eram grandes, donos de si próprios, tinham nos calos das suas mãos a independência económica, a liberdade e o pão da família, dependiam apenas da sua enxada ou outras ferramentas, das terras suas ou de renda, e do sol, da chuva e das pragas e não tanto ou quase nada de patrões, ou de caridades particulares e estatais; eram homens livres e sem donos, foi assim que eu vivi e senti esses homens e mulheres e esses tempos, era assim a minha família.

As mulheres e mães de família eram todas elas domésticas, assoberbadas desde manhã cedo no tal “mata-bichar” dos seus homens, antes destes saírem para o trabalho, e no preparar das crianças a caminho das escolas, feito isto, davam uma volta pela casa, tratavam da criação, galinhas, coelhos, porcos, etc.., iam deitar umas águas para regas simples, sacharem ou mondarem ervas daninhas dumas quaisquer culturas, por vezes lavar umas roupas no tanque público, lá na fonte da aldeia, bem torcidas, esfregadas e batidas nos lavadoiros, onde, a meio com as lavagens, barrelas e o corar ao sol das roupas, mexericavam bem mexericadas as vidas lá da terra, e depois iam apanhar umas verduras às hortas para o “jantar” ou para a “ceia”; em linguarejar aldeão, almoço dizia-se jantar e o jantar era a ceia, outros tempos.

As Primaveras desses “antigamentes” eram as mais queridas e lindas das estações do ano, traziam consigo o ressuscitar da vida em glória, quer na alma e coração das gentes rurais,  quer pelos campos e baldios fora, emoldurados estes por matas seculares de pinheiros, com tudo a explodir em policromias mil, de verdes e flores sem fim, ao som de sinfonias escritas pelos deuses nos cantares dos grilos e das aves, estas muitas e diversas, rouxinóis, toutinegras, pintassilgos, cucos, pôpas, rolas, pardais, melros, tentilhões, verdilhões e até tralhões, etc… tudo isto em fundos de silêncios despoluídos e vazios até de carros, excepto os de bois… eram silêncios magníficos, feitos de natureza pura, e do vozear ocasional das gentes …

… e ali, na minha Quinta de S. Cosmado e nas outras aldeias, nestes bucólicos cenários de cores, pintadas num nunca acabar de flores, e de cantos e encantos de faunas várias, de paz e simplicidade, o gritar do silêncio era tal que, por vezes, só se percebia a presença humana, pelos cozinhares ao meio-dia, nas lareiras de chaminés a fumegarem aos céus, vestidos estes dum azul forte e imaculado, de tão celeste que era então…

… hoje, com a poluição, o céu perdeu aquele azul, já não é o mesmo, mas dava gosto e aconchegava a alma, ver de longe a aldeia em mudo e quedo sossego, com todas as suas chaminés botando fumos ao alto, convidando à janta ou à ceia, no remanso do lar.

A Quinta de S. Cosmado tinha um passado histórico notável, foi parte das terras doadas pela Coroa à nobre família dos Álvares Cabral, tal como S. Cosmado e outras mais no concelho de Azurara da Beira, do qual o pai de Pedro Álvares Cabral, Fernão Cabral, Senhor de Belmonte, foi nomeado Corregedor do Reino e, como tal, encarregado de aplicar a Lei aqui no Concelho; homem duríssimo e inflexível, era conhecido pelo “gigante das Beiras”, dada a sua elevada estatura.

Virá então o nome de Quinta de S. Cosmado desses tempos, por ser de facto uma quinta, onde se localizavam as habitações dos, ao tempo, ditos servos da gleba, os trabalhadores e, outras de traçado mais rico e nobre, para a família dos Cabrais, (que tinham também casa própria com brasão em S. Cosmado) e mais ainda os celeiros, palheiros, um fontenário com tanque, lavadouros públicos e reservatório de águas, ainda hoje encimado pelo Brasão de Armas da Família dos Álvares Cabral, muito bem conservado, um forno do povo para cozer o pão, etc…

A minha avó toda a sua vida pagou o foro anual devido àquela família em Belmonte, relativo a uns terrenos comprados na Quinta de S. Cosmado, onde tínhamos casas, e onde vivíamos e ainda vivemos, parte da família.

Este pequeno povoado, inicialmente, tinha aí umas trinta casas antigas e igual número de famílias, que foram gradualmente aumentando em número, todas sem electricidade, sem água canalizada e sem esgotos até meados dos anos 60, anos em que finalmente a electricidade e a água canalizada desceram ao povoado.

Havia entre o casario uns baldios de todos pertença, onde nós, os garotos, brincávamos, as ruas eram de terra batida, sendo as principais as que iam pelo cemitério ou Cruz da Mata para Mangualde, ou pelas corticeiras para Nelas e Viseu e havia ainda muitos atalhos com destinos vários.

No ponto mais alto da aldeia, imponente, senhorial, toda ela vetusto e puro granito, arquitectura tradicional beirã, três pisos, grande pátio de altos muros e sólidos portões de ferro, varandas ornadas de ferros forjados em florões, situa-se ainda hoje a casa ex-libris da Quinta, pertença duma mui digna família, a do Snr Antoninho e Gracinha dos Santos, hoje já falecidos.

Outra das figuras inesquecíveis e muito respeitadas na Quinta de S. Cosmado era o Sr. Artur, marido da Ti Libânia, residente ali mesmo ao lado da casa grande, numa sua quintinha e casa antiga muito simpáticas.

Recordo-me que a Ti Libânia e o Ti Artur tinham no pátio traseiro da casa, uma prensa para espremer o cachiço das uvas, da qual toda a aldeia se servia, pagando em espécie claro, antes de irem, com os engaços já espremidos e secos, fazer as suas aguardentes no alambique, lá para os lados da quinta do Alpoim, em Mangualde, a caminho da estação.

O Snr Artur era o “Cabo de Ordens ou de Polícia” na Quinta de S. Cosmado, auxiliar adjunto do “Regedor da Freguesia”, dependendo este último do Presidente da Câmara Municipal; incumbia ao Regedor e ao Cabo de Ordens  fazerem cumprir as ordens e instruções emanadas do presidente, relativas a deliberações e posturas municipais, e auxiliarem as autoridades policiais, judiciais e sanitárias sempre que necessário, etc…

Em Portugal, entre 1836 e 1977, o Regedor era o representante da administração central do concelho, junto de cada freguesia, mas foram perdendo razão de ser, à medida que a GNR e PSP foram estando cada vez mais presentes, assim como outras autoridades, as sanitárias, etc…

O regresso dos homens a casa no fim do dia de trabalho, vindos dos campos e das oficinas, por vezes era menos pacífico, pois o vinho tinto, de quando em quando, corria mais do que o devido ao longo do dia, e sendo mau conselheiro dava aso a que velhas ou novas rixas entre vizinhos e não só, algumas vindas de gerações passadas, ocorressem ou se reacendessem, acabando em altercações mais ou menos violentas, com umas cabeças partidas mas, logo de imediato, confrontavam-se com a presença do Cabo de Ordens, ou da GNR, que eram prontamente obedecidos só pela presença, e a paz regressava à aldeia.

Ficou-me ainda para sempre, no meu imaginário de adolescente, a figura memorável do Snr Anjos, que foi Chefe dos Correios de Mangualde, que morava logo ali à entrada da Quinta de S. Cosmado, para quem vinha da Cruz da Mata, numa casa muito soalheira; foi meu particular amigo, pese embora ser mais velho que eu, muito me ensinou da vida e duma ideia religiosa, o espiritismo científico, que muito lhe agradeço.

O correr dos tempos trouxe, inevitavelmente, o progresso, novos prédios em lugar das matas, novas gentes, ruas asfaltadas, iluminadas, água corrente, actividades económicas diversas e o abandono das agriculturas, como subsistências básicas dos aldeões ali viventes.

A Quinta de S. Cosmado foi perdendo o seu carácter rural, modernizou-se, urbanizou-se, foi rebaptizada como Bairro de S. João, os seus residentes deixaram de viver dos e para os campos, que ficaram e estão votados maioritariamente ao repouso, e tornaram-se trabalhadores de empresas várias e muitas, como a  Citroen, agora PSA, etc…

Felizmente Mangualde, graças à invulgar iniciativa privada dos seus habitantes e ao seu extraordinário dinamismo empresarial e ainda aos apoios das muito eficazes administrações autárquicas, que têm gerido o Concelho, tem hoje, excepcionalmente, uma situação de quase pleno emprego, que dispensa o recurso generalizado à agricultura de subsistências de outros tempos.

Hoje gosto e muito do meu novo Bairro de S. João, já me habituei a ele e ao nome, é o progresso e o ciclo normal das vidas em movimento, mas tenho também muitas saudades da minha velhinha Quinta de S. Cosmado, que, como passado que foi, já só volta em memórias como estas de velhos como eu.

José Luiz Costa Sousa