Imagem das vidas aldeãs, a tradicional  merenda, a meia tarde, para quem fazia trabalhos agrícolas

 

Gostei muito da minha vida, desde sempre e até hoje,  ao  princípio, simples e aldeã, mergulhada entre os afazeres agrícolas das subsistências da família, os meus estudos primários e secundários e as brincadeiras e jovialidades rurais das infâncias e adolescências daquela época, já muito distante, anos cinquenta e sessenta; depois, ausentei-me e vagueei por esse mundo fora, no exercício do meu mister, em busca do melhor para a família e para mim; quarenta anos depois, inevitavelmente, voltei às origens, aqui, em Mangualde.   

Desse meu tempo, de menino e moço de aldeia, ficaram-me alegrias, entusiasmos, sonhos, ilusões, fantasias, amizades, cumplicidades, brincadeiras, etc… em doces memórias de contentamentos meus então vividos, pequenas felicidades, umas menos, outras mais, que são hoje pedaços da minha alma por aí dispersos ao acaso, mas que reencontro sempre que, de saudade ao peito, percorro os caminhos desta minha terra e, sobretudo, quando reencontro velhos companheiros dessas caminhadas do alvorecer da vida. 

Nado e criado na então vila de Mangualde, por cima da antiga mercearia do Snr Barbosa, entre o café Ideal e o café Melro, aos cinco anos de idade fui para a Quinta de S. Cosmado, ora B. de S. João; de menino da vila, crescido em casa confortável e asseada, que me protegia nela fechado dias inteiros, de repente passei para um mundo radicalmente diverso, feito de ruralidades puras e duras, fora e dentro de portas, estas agora sempre abertas para as infindas matas de pinheirais e baldios envolventes, onde aprendi a correr na liberdade dos ventos e a brincar com as outras crianças da aldeia.

Fui, pois, apenas mais uma das muitas crianças e adolescentes, duma humilde e camponesa aldeia beirã, típica dos anos cinquenta, igual a quaisquer outras, que por esse Portugal inteiro havia; com as outras crianças ia e vinha da escola, com elas brinquei e andei pelos campos, ia ao cinema, ao rio no Verão, assisti às festas e romarias tradicionais, com elas me fiz jovem adulto e vivi-lhes todas as suas carências e dificuldades, assim como os sentires e até os seus sonhares…

… esses meus amigos simples, dos primeiros passos da vida, ficaram-me para sempre no coração, como os melhores e maiores de todos, pese embora os muitos milhares de bons companheiros que tive ao longo da vida, nacionais e estrangeiros, mas… amigos, amigos mesmo, só os primeiros da vida, os da minha aldeia.

Foi com eles que encontrei e conheci a eterna criança que vive dentro de cada um de nós, com eles aprendi a jogar à bola, feita de trapos, não havia outras para as nossas posses, as balizas eram duas pedras de cada lado, o campo era o restolho da Snra Maria da Lage, ou a rua ao lado da casa grande da Snra Gracinha, e por ali brincávamos também, todos os outros jogos tradicionais: – a bilharda, a malha e o piço, os berlindes, as caricas, os quatro cantos, o jogo do prego, o do eixo, o da cabra cega, o correr com o arco e a gancha, o montinho e o sete e meio com cartas, os polícias e ladrões, os soldados e castelos, etc…

Recordo com particular alegria o dia, ou melhor, o anoitecer, tinha eu quinze anos quando, pela primeira vez, chegou a electricidade e a luz pública à aldeia, incrédulos, iluminados e maravilhados, pudemos passar a estar e jogar de noite nas ruas, debaixo dos candeeiros públicos, até ao “recolher obrigatório” a casa; foi um choque, que nunca mais esqueci; ter vivido todos aqueles anos às escuras nas ruas e, de repente, milagre, a noite fez-se dia para sempre… ruas fora, foi coisa de espanto e bem dizer sem palavras…   

Na casa de cada um pouco ou nada havia de entretenimentos, excepto o convívio familiar, a luz eram candeeiros de petróleo ou gasómetros, poluentes de fartos fumos e cheiros desgradáveis, ninguém tinha televisão, e rádio havia apenas duas famílias na aldeia que tinham, o Zé do Torres e a Dona Teresa, livros só em casa do meu amigo Manelito, onde às vezes a mãe organizava uns serões, com algumas actividades e passatempos agradáveis.

A rádio antes da chegada da TV era tudo, por ali corriam as radionovelas como a inesquecível “Sempre Maria”, que punha as meninas e senhoras em suspense e de comovidas lágrimas nos cantos dos olhos, e mais os “Discos pedidos” ou “Quando o telefone toca” a passarem, a pedido dos ouvintes, as músicas da moda, portuguesas, espanholas, italianas e francesas e mais os “Parodiantes de Lisboa”, programa ímpar de boa disposição e humor, na hora de almoço, que ninguém dispensava, havendo rádio…

… domingos de manhã, infalivelmente, o incontornável Zé do Torres botava o rádio no máximo volume, no soalheiro largo do alto do povo onde vivia, era a hora dos discos pedidos, directos ou telefonados, e ali nos reuníamos todos, e passávamos a manhã, deliciados, a ouvir as músicas mais populares de então… 

… ah! e mais ainda os relatos do futebol, domingos à tarde, chamarizes das tabernas, todas bem equipadas a radiofundirem futebóis a jorros, com paixão e fervor, em sonoridades berrantes, quase atordoantes, com golos longamente gritados aos sete ventos, ouvidos à distância, ruas além…

… dentro das tascas, aí, os homens da terra, absortos  em aguerridos jogos de piços e fitos, ou sentados em torno de rústicas mesas, ouvidos atentos ao relato, olhos postos no jogo da sueca ou da bisca, batiam as cartas, forte e feio, em durezas de punhos cerrados nos tampos das infelizes cujas mesas, cada qual a bater mais forte que o outro, isto, quando ganhavam a vaza e, para confortos dos espíritos e do estomago, lá iam sendo botados de bom tinto artesanal a copos de três, e aviados a sandes de sardinha assada, pataniscas de bacalhau, ou postas fritas de chicharro, petiscos tão ao gosto das rudes clientela…

… passávamos noites também, até altas horas, a ouvir no rádio do Zé, os relatos dos campeonatos internacionais do hockey em patins, que se decidiam sempre entre Portugal, Espanha, Itália e Argentina, algumas vezes fomos campeões mundiais, glórias grandes daqueles tempos, que vivíamos em ruidosos entusiasmos únicos e sentimentos pátrios inesquecíveis … 

Depois, chegou a televisão, fins da década de cinquenta, mas só mesmo os mais bafejados de teres e haveres, mais os cafés, tabernas e o patronato tinham o mágico aparelho; boquiaberto, nos meus dez anos de idade, vi pela primeira vez a RTP na esplanada do largo do Café Ideal, a transmitir a volta a Portugal em bicicleta, ficou-me para sempre no ouvido a música que a acompanhava, a roda pedaleira… era à época Alves Barbosa um ídolo nacional sem igual, sempre de camisola amarela ao peito.

Para vermos televisão, íamos ao salão do Patronato, entre o Colégio de S. José e de Sta. Maria, onde podíamos assistir a toda a programação; em alternativa, íamos a um ou outro café ou taberna, como o “Nove à hora” ou a Snra Emília na Cruz da Mata, para vermos os nossos mais amados programas, “O Fúria”, “A Lassie ou o Rin Tin Tin “, “O Danger Man”, “O Homem Invisível” e a inesquecível série do “Bonanza”, etc…  

… a televisão e todas estas e outras séries passaram a ser um mundo novo, maravilhoso, um ritual de diversão regular a cumprir, quase sagrado, de espanto e encantamento para a garotada da aldeia, e lá nos organizávamos para os ir ver, infalivelmente, a paciência e boa compreensão dos estabelecimentos faziam o resto, tinham sempre um cantinho para nós, mesmo sem fazermos qualquer despesa.

O cinema era a diversão maior, normalmente sábado à noite, por vezes matinées ao domingo; pasmados frente ao gigantismo do écran em cinemascopias de 70mm e thecnicolores sem igual, maravilhávamo-nos, éramos arrebatados para outros mundos, outros tempos, outras vidas, nas asas da imaginação, levada e enredada em hipnotizantes ficções e histórias mil, contadas em cada filme…

… todas as semanas, tínhamos de juntar uns difíceis centavos, para o bilhete da Geral, o mais barato, bancos de madeira corridos, onde ansiosos esperávamos o toque do inicio de sessão, fechavam-se as luzes, acendia-se o écran, e começava a viagem para o além de nós e do nosso mundo, era a festa dos nossos sentidos, principalmente, com os filmes de “índios e cowboys”, ou em gargalhadas sem fim com o imortal “Cantinflas”, os maviosos cantares do “Joselito” e da “Marisol”, as aventuras fabulosas do “Tarzan”, “Robin dos Bosques”, “Pirata Vermelho”, os eternos clássicos portugueses, ou as monumentais realizações do “Ben Hur”, “Os Dez Mandamentos”, “Os Últimos Dias de Pompeia”, “Sansão e Dalida”, “Os Canhões de Navarone”, enfim… foram horas e horas de  memoráveis alegrias, felicidades e sonhos que a minha geração, e muitas outras, antes e depois, devem ao Cine Teatro de Mangualde; obrigado Cine Teatro.

Chegado o Verão, terminadas as aulas, as crianças ficavam todas na aldeia, e por ali andávamos, umas mais com as famílias pelos campos a ajudarem, outras nem tanto, eram tempos fartos de frutos da terra e das árvores; à tardinha, lá nos juntávamos todos, no alto da aldeia, para decidirmos brincadeiras …

… chegado o primeiro dia de férias, com grande satisfação, eu libertava-me sempre das botitas de carneira e rasto de pneu de ir à escola e a Mangualde, que a minha avó comprava na feira antes do início de cada ano escolar, e passava o Verão todo de pé descalço, por gosto, demorava pouco mais de quinze dias para que as plantas dos pés se habituassem e calejassem para gozar bem a liberdade dos pés nus, nem tudo eram rosas, por vezes havia picos e algumas dores…  era assim… mas para a escola e Mangualde todos íamos calçados, botas, tamancos, sandálias, todos tinham algo… não me recordo de pés nus a caminho da escola… nunca e ninguém…

… na altura era uso e costume, das brincadeiras da garotada, servirmo-nos, sem autorização dos donos, das frutas que iam amadurecendo aqui e ali e, semelhante tal, era uma questão de honra adolescente, diria mesmo um dever da tradição popular, e de facto éramos uns malandros, implacáveis cumpridores desses deveres aldeãos de “furtadores de fruta”, e eu pecador me confesso, fui exímio ratoneiro de tal arte, que vinha lá do fundo dos tempos, pois todos tínhamos as nossas frutas também, excepto um ou outro.

Esta prática nada tinha a ver com expedientes para mitigar eventuais fomes ou subalimentação de algumas gentes das aldeias, garotos neste particular, não, nunca vi fome na minha aldeia, nunca e em ninguém, nem em nenhuma outra em redor, todos tínhamos os mínimos, batatas e couves, e se por acaso da vida, alguém não tinha, havia nas aldeias uma solidariedade comunitária ancestral de entreajuda, que funcionava sempre, no imediato, de forma discreta e amiga, sem exibicionismos de caridades hipócritas.

A calada do anoitecer era o melhor cúmplice para visitarmos as frutarias alheias e, numa dessas noites, já tarde, estabelecemos como objectivo “irmos cear e sobremesar” numa cerejeira enorme, carregada e amadurecida de frutos até ao chão, como poucas se viam, mesmo ao pé da casa do dono, o Snr Jorge, para os lados da Quinta do João Cabral e da casa do Roseta pai, um dos três respeitáveis lavradores da terra…

… éramos uma comitiva de peso, dois Barrosos, um Matança, eu e o Manuel do Torres, curiosamente, nós os dois tínhamos uns clarins tipo tropa, cada um o seu, por brincadeira levámo-los para, depois de bem repastados, lá de cima da árvore, agradecermos a toque de corneta, as opíparas cerejas, e assim se cumpriu, onze da noite, estavam os cinco finos larápios, já de barrigas abarrotadas e refastelados nos ramos da cerejeira…

… vai daí eu e o Manel botámos os clarinetes à boca e toca de clarinetarmos, alto e bom som, alvoradas e em frente marches… a família adormecida já, acordou em sobressaltos de incredulidades, espantos e zangas de partir cabeças e ossos a torto e a direito, acendiam candeeiros, berravam impropérios e, enquanto céleres saltávamos da cerejeira e dávamos ás de vila Diogo campos fora, os homens da casa apareciam já de sachadeiras e forquilhas ameaçadoras e violentas nas mãos, vociferando seus ….. isto e aquilo… escapámos ilesos, por um triz, foi uma noite épica, nunca mais esquecida… adolescências da aldeia, coisas de espíritos simples, maldadezinhas inocentes, das quais fui fiel praticante, em nome da tradição e duma boa brincadeira e duns salutares rires.

No Verão, o rio era a praia de todos nós, as crianças e adolescentes da aldeia, normalmente aos fins de semana; enfiado um fato de banho, toca de calcorrear os nove quilómetros, na estrada velha de Mangualde para Viseu, com alguns atalhos à mistura, até ao fontanário de águas sempre correntes, a seguir a Fagilde, ainda hoje lá presente, agora por vezes sem água, ao lado da estrada, local de sombras aprazíveis, de onde descia um atalho encosta abaixo até à antiga represa ou levada do rio Dão, com água farta e pacífica para nadarmos e nos banharmos… foi ali que aprendi a nadar, eu e muitos outros rapazes.

Ir ao rio era alegria, divertimento, entusiasmo, uma tarde diferente e extremamente agradável; havia sempre muita gente, famílias, algazarras, bulícios, piqueniques, vida em movimento, rostos resplandecentes de luz pelo simples estar ali no rio, do nadar, chapinhar ou mergulhar nas águas …  à tardinha regressávamos à Quinta, mais uns bons quilómetros a pé… uns quase nadas para a idade que tínhamos e que fazíamos com gosto.

E eram assim os passatempos ou tempos livres das vidas crianças e adolescentes dos rapazes da minha aldeia, naqueles tempos dos anos 50 e 60, muito ar livre, muitas actividades lúdicas tradicionais, mais convívio presencial entre todos nós, mais trabalhos nos campos e outros, começados logo na idade da escola primária, com tarefas simples e leves, que se iam tornando mais exigentes com a idade e o maior vigor físico… participávamos regularmente nas actividades para sustento das famílias, o que nos tornava mais responsáveis e mais conscientes da vida real, desde muito novos. 

Foram outros tempos, outras circunstâncias, outros usos e costumes, outras limitações e carências, outros entendimentos das coisas da vida, mentiria se dissesse que trocaria esse meu mundo criança e adolescente, por outro mais cheio de haveres, ou pelo mundo de hoje, não, nunca o faria, adorei o mundo que então vivi. 

Nem sempre mais haveres, mais tecnologias, mais facilidades e mais tudo, significa mais bem estar ou mais felicidade, por vezes, antes pelo contrário; os excessos do que quer que seja, ou o simplesmente ter tudo, como ocorre nas vidas de hoje, podem diminuir as hipóteses de se ser feliz, porque a natureza humana tem necessidade de obstáculos, de dificuldades, de desafios, de não ter tudo de mão beijada, gratuitamente, e isso para nos sentirmos vivos, para termos de lutar pela vida e sabermos valorizar o viver e o ter, e é aí, na luta e no vencer das nossas batalhas pela subsistência,  dia a dia, que reside o caminho da realização e da paz pessoal, que nos traz sossego e satisfação interiores, seja, o simplesmente estarmos de bem connosco e com a vida, e essa é a felicidade, não há outra, o resto são devaneios. 

 

José Luiz Costa Sousa

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