Fez agora 21 anos que cheguei a Timor para integrar a missão da ONU, UNTAET, e ali exercer as funções de Comissário, ou Comandante-Geral da Polícia Civil da ONU, com um efectivo de 1640 polícias de 45 Nacionalidades, oriundas de todo o Mundo.

Fica aí a minha leitura política daquilo que foi de facto a transição de Timor para a Independência.

Quatorze anos vividos em operações de paz da ONU, da UEO e da UE, no contexto de diversos e mui complexos conflitos político militares internacionais, facilitaram-me uma perspectiva muito verdadeira do jogo hipócrita da política internacional, que se situa para além dos cenários e dos discursos produzidos pela política e pelos meios de comunicação social ao seu serviço, nas suas duas vertentes principais:- a política real (politicamente incorrecta) e a virtual (politicamente correcta), esta última concebida, produzida e manipulada por “engenheiros e fabricantes” profissionais da opinião pública, no sentido de a tornar não só receptiva mas, até exigente, das decisões e intervenções, previamente planeadas, conforme os interesses da potência actualmente dominante no mundo e dos seus aliados.

A influência política sobre Timor independente foi sempre, é e será um objectivo crítico da estratégia global dos EUA, não só pelo seu potencial em petróleo e gás natural, mas, sobretudo, pela sua posição geográfica na linha da frente da zona de influência regional da sua aliada Austrália, em direcção à Indonésia, país habitado pela mais numerosa população muçulmana do mundo, facto relevante, num tempo em que os conflitos internacionais são cada vez mais manipulados, no sentido de parecerem choques entre civilizações, cristãos contra muçulmanos e vice versa.

Consequentemente, aquela superpotência definiu para Timor uma estratégia que, em 1975, num mundo ainda bipolarizado em torno das duas superpotências, EUA e URSS, passou pela sua integração na Indonésia, daí o aval político dos EUA /Austrália (Henry Kissinger) à invasão de Timor por aquele País, para salvarem Timor da integração na área de influência da ex URRS, e evitarem assim o aparecimento duma nova “Cuba” naquela parte do mundo, conforme intenção activa do poder político português pós Abril de 74, notoriamente 100% pró URSS…

… mais tarde, a partir de 92, na sequência do colapso da URSS, esta estratégia evoluiu para uma mais conveniente independência, garantida que fosse a influência americana, via Austrália; em termos simplistas foi esta a realidade política. que reiniciou o processo de transição de Timor para a Independência, na década de 90.

Nada ali aconteceu por acaso, nem o apoio exterior à guerrilha durante 27 anos, circunscrito e traduzido, curiosa e concretamente, na presença contínua de dois militares das forças especiais australianas junto das Falintil (Forças Armadas da Libertação Nacional de Timor Leste), no mato e em Timor, os últimos dos quais eu conheci pessoalmente em Dili em 2000, e que garantiram os apoios logísticos necessários à sobrevivência militar das Falintil durante esses 27 anos, apoios estes fornecidos pela Austrália que, …

… paralelamente, tinha reconhecido em primeira mão Timor, logo após a invasão e a ocupação, como província Indonésia e, em contrapartida, obteve os direitos exclusivos de exploração do petróleo de Timor e, como tal, a Austrália tornou-se, aparentemente, o melhor aliado político da Indonésia na questão da integração de Timor, mas sendo na realidade o seu pior inimigo; a Austrália jogava assim do lado do amigo e do inimigo da Indonésia e, como tal, seria sempre vencedora, como foi; é hoje a dona neocolonial de Timor.

Também não foi por acaso o prémio e o tempo de atribuição do prémio Nobel a Ramos Horta e ao Bispo D. Ximenes Belo, planeado para acordar o Mundo para a questão adormecida de Timor durante bem mais de uma década, e a trazer de novo para a ribalta da política mundial, gerando assim renovado apoio mediático, político e diplomático internacional e mais intensificado a partir desse facto, com vista a uma independência.

Tudo ocorreu conforme os interesses e os planos dos EUA e Austrália, com os diversos actores internacionais e timorenses intervenientes, uns mais e outros menos conscientes desta realidade, não desconsiderando o mérito e idealismo, de todos os que, inocentes, mas úteis a esta estratégia, e ao longo de 27 anos, lutaram de armas na mão e não só, por uma utópica independência.

Nos dias que correm já não há independências políticas verdadeiramente independentes, são todas interdependentes e/ou neocolonizadas, nada mais e nada menos, excepto três ou quatro países no mundo.

A ONU deu execução a esta estratégia em Timor, garantindo a transição para a “independência”, mas permitindo e instalando, subtil e eficazmente, todos os mecanismos locais de influenciação necessários à subordinação política e económica da ilha à potência regional da área, a Austrália, tal como é hoje.

Desde o colapso da União Soviética, que todos os processos de “transferência política” de territórios ou países, duma qualquer área de influência política para dos EUA e seus Aliados, têm passado e passam, normalmente, por conflitos políticos e militares, iniciados sempre, encobertamente, pelos EUA, “escondidos” estes sempre dentro e atrás da ONU, e ou também duma coligação internacional de países aliados, conflitos esses de geração aparentemente espontânea ou de terceiras origens mas, na realidade, manipulados e provocados pelos EUA, conforme se disse e que…

… por sua vez, vão produzir a destruição (terra queimada) total dos sistemas político militares, económico financeiros e das infra estruturas existentes nos territórios a absorver pela influência dos EUA, territórios esses que ficam em absoluto impotentes de resistir a tal influência, e vão também fazer intervir a ONU e as suas missões de paz, com as suas vertentes militar, policial, diplomática e humanitária, para execução garantida da transferência dessa região ou país, para a área de influência política dos EUA e Aliados…

… como por exemplo ocorreu na ex. Jugoslávia com a Croácia, Bósnia, Kosovo e, posteriormente, com a Geórgia, o Afeganistão, Iraque, Líbia, Ucrânia, vários países de África, etc… estes são apenas alguns exemplos perfeitos do que foi dito, (muitos deles por mim vividos pela ONU, em funções de topo).

O Representante Especial do Secretário-Geral da ONU na UNTAET, Sérgio Vieira de Mello e à sua esquerda 
o Superintendente-Chefe da PSP, Comissário da CIVPOL, autor deste texto, numa cerimónia formal da 
Escola da polícia de Timor. 

Porquê a sistemática redução a“terra queimada” dos novos territórios a “conquistar” pelos EUA e seus Aliados, como foi feito nos exemplos atrás mencionados e está a ocorrer neste momento noutros pontos do globo, em diversas fases do processo, por ex. Congo, República Centro Africana, Síria, Bielorrússia, Venezuela, etc…? As guerras (ainda não de confrontação militar directa) em curso movidas pelos EUA/EU e NATO contra a Rússia e China, enquadram-se neste contexto, embora noutra dimensão.

É um esquema simples e básico, mas eficaz, já prática corrente dos conquistadores Romanos há mais de 2000 anos; quaisquer territórios politica e militarmente destruídos e desorganizados, infra estruturas reduzidas a cinzas, com as economias e finanças a zero e com situações de insegurança militar e/ou pública instabilizadas, grave e permanente, colocam a povo da região a absorver pelos EUA na dependência total dos detentores da força político militar superior e da ajuda humanitária, ou seja, na sua total subordinação política, por mera lógica de sobrevivência física.

Toda esta encenação é sempre antecipada e acompanhada por campanhas de pré-fabricação da opinião pública internacional, cientificamente concebidas e executadas, apoiadas em situações ou factos reais, semi reais ou fictícios, que são intencionalmente manipulados e/ou provocados, para fundamentarem as intervenções que se pretendem, na perspectiva da deslocação desse território para a dita área de influência dominante no mundo, (EUA/Aliados/EU /NATO)

…. tudo isto a coberto de dilúvios de justificações mediáticas non stop, meses e anos seguidos, baseadas em “ideais” de democracias, liberdades, direitos humanos, ajudas humanitárias e outras invencionices dos catecismos políticos em vigor no ocidente, simples banhas da cobra de cinco estrelas, para intelectuais de poucas ou nenhumas.

À luz do que ficou dito, Timor ao entrar num processo de transferência da área de influência Indonésia muçulmana para a americana e cristã, dificilmente escaparia à “terra queimada”, ocorrida logo pós referêndum e, a uma sólida presença diplomática, militar e policial, no âmbito da ONU, a qual se eternizou muito para além do necessário, justificada regularmente, através da agitação intencional de falsos fantasmas da insegurança, ora militar, ora pública, questões estas que eu vivi pessoal e intensamente, no âmbito das minhas funções na ONU.

Na lógica desta estratégia, encaixou, pois, a “casual” destruição sistemática de todas as infra estruturas de Timor pós referêndum, o que justificou a entrada em Timor das tropas australianas (não ONU, inicialmente), depois dum tempo de espera “táctica” para criar, na opinião pública timorense a receptividade e a necessidade urgente da sua vinda, em defesa dos timorenses contra os assassinatos pelas milícias e indonésios e contra as destruições dos seus patrimónios.

Recorda-se que a Austrália, em 75, reconheceu logo após a invasão, formalmente, a integração de Timor na indonésia, negociando em troca o petróleo; pese embora a presença daquelas tropas australianas, que tinham entrado em Timor em nome informal da ONU para impedirem a destruição da ilha, os indonésios e as milícias destruíram, roubaram, mataram e retiraram para o outro lado de Timor, sem pressões significativas, mesmo nenhumas, antes pelo contrário, em sintonia com as tropas australianas, conforme me foi testemunhado por personalidade timorenses muito credíveis.

Por outro lado, os planos indonésios para a destruição, pós referêndum, de todas as infra estruturas de Timor, foram do conhecimento antecipado da ONU que, no mínimo, foi informada pessoal e formalmente pelo Presidente do Partido UDT, o Eng. João Carrascalão, de tais intenções e não só, e nada foi feito para os prevenir, alegadamente, por tais informações não serem credíveis.

Não foi, pois, por acaso, que em Timor, durante a sua presença de muitos anos, a ONU não produziu qualquer desenvolvimento económico social significativo, tendo-se limitado a “gerir cientificamente“ a “terra queimada“ e a “segurança militar e pública“, para realização dos objectivos atrás expostos, e dos processos eleitorais, assim como da criação das instituições políticas de suporte à independência, garantindo a sua máxima dependência da Austrália, como meio seguro de controlo político e económico posterior à independência, em favor dos EUA; simples, mas efectivo.

Considerando que o “não desenvolvimento” de Timor significa a dependência e subordinação permanente da Austrália, o futuro próximo de Timor será de contínuo adiamento e impedimento de qualquer desenvolvimento sócio económico relevante, pelo amigo australiano.

Foram e são estes os reais caminhos da independência de Timor, ditados pela lógica inexorável duma geoestratégia de expansão e domínio planetário da actual potência hegemónica mundial e seus aliados.

A diplomática diplomacia portuguesa, passe o pleonasmo, teve de tudo isto um mero entendimento politicamente correcto, alheia em absoluto à realidade da política, remetendo-se para a sua condição de “fazer as honras da casa”, enquanto “braço diplomático” da potência administrante que era Portugal e, lateralmente, serviu submissamente os interesses da Austrália e dos EUA, mais sem do que com consciência de tal facto.

Nos anos que servi Timor, a totalidade dos orçamentos do Governo de Transição foram pagos por Portugal, embora nos papéis e nos média aparecesse outra coisa qualquer; os outros muitos países doadores prometiam formalmente doações de dezenas de milhões, mas, na realidade, nunca o faziam ou, a fazê-lo, eram numa parte ínfima das promessas e numa modalidade de retorno imediato para o País dito doador…

… eu convivi com estes aspectos, que me foram muito bem explicados, pessoalmente, pelo Chefe de Administração da UNTAET, quando o questionei acerca das doacções prometidas para a Polícia Timorense, por países vários; chamou-me inocente, coisa, que de facto eu era.

Diga-se em abono da verdade, que as únicas obras feitas em Timor, no período de transição, foram realizações dos portugueses ou do seu dinheiro, isto até fins de 2001, data em que regressei a Portugal.

Seria justo que os EUA, a Austrália, etc… tivessem suportado a factura, considerando que de Timor tudo sugam desde há muito e continuarão a sugar até ao fim dos tempos: – o petróleo, o gás natural, o pescado, o café, o mármore, etc…

Timor chegou à independência num tempo em que as independências eram e são cada vez menos independentes e, como tal, mudou apenas de dependência, vestido embora, exteriormente, de independente, tal como hoje é Portugal, nós dependemos de Bruxelas e Timor da Austrália. As independências são figuras de retórica política, histórias da carochinha.

 


Mangualdense José Luiz Costa Sousa