Artigo de : José Luiz da Costa Sousa
Superintendente da PSP –  Assessor e Oficial Chefe da Segurança do Presidente Jorge Sampaio (98,99 e 2000)

O Exmo. (ex) Presidente da República de Portugal (1996-2006), Dr. Jorge Sampaio, faleceu, vai hoje a enterrar.

O Povo Português, a Liberdade, a Democracia e os Direitos Humanos estão de luto, perderam um grande Homem de acção, e uma das suas vozes políticas mais credíveis, efectiva e empenhada na sua defesa e implementação, antes e depois do 25Abr74. Tive a subida honra e o raro privilégio de servir Portugal e o Presidente Jorge Sampaio, como seu Assessor e Chefe da Segurança da Presidência da República.

Tem este texto a única intenção de prestar uma singela homenagem à indiscutível grandeza humana e política do Dr. Jorge Sampaio. As mais diversas entidades políticas e outras, os média, etc… nacionais e internacionais, enalteceram já, merecida e exaustivamente, todas as grandiosas realizações da sua carreira política, desde a luta contra o Estado Novo como Presidente da União dos Estudantes de Lisboa nos anos 60, passando pela defesa em tribunal de presos políticos antes de Abr74, pela sua riquíssima vida partidária e pública, pela interminável lista dos cargos políticos excepcionalmente desempenhados, em particular os dois mandatos presidenciais, pelo seu empenhamento verdadeiramente único na questão de Timor Leste e ainda, cessado o último mandato presidencial, pela sua disponibilidade total de continuar, pela ONU, ao serviço de todos os cidadãos do mundo, como Presidente da Luta contra a Tuberculose e na defesa da Aliança das Civilizações da ONU.

Permitia-me neste contexto, como modestíssimo e respeitoso tributo à sua memória, falar um pouco do que como era difícil e extremamente exigente o dia a dia do Presidente Jorge Sampaio, na perspectiva do meu cargo na Presidência, descrevendo alguns casos simples e aleatórios, tal como os vivi.

Corria o Verão de 1999, a intensiva “Presidência aberta” na Região dos Açores (15 dias sem descanso) terminara; inesperada, noite dentro, chegou a notícia da morte do Rei Hassan de Marrocos; o Presidente decidiu ir ao funeral mas, no dia seguinte, tinha o compromisso já assumido de ir a Santiago de Compostela, a convite do Rei de Espanha.

E lá fomos, o mítico lugar de peregrinação medieval vivia festas comemorativas de já muitos e velhos centenários; a dimensão e beleza da catedral esmagam; ali o Presidente e Esposa encontraram-se com os Reis de Espanha e, lado a lado, assistiram à missa, em romeira atitude; o ritual dos incensos hipnotiza; imensos vasos de prata pendurados em correntes vindas lá dos altos interiores dos góticos pináculos, pendulavam vertiginosos balancés de vai véns, fumegando aromas sobre um mar de devotas cabeças, inclinadas solenemente perante o culto divino.

Findas as cerimónias, urgentes, partimos no avião Falcon para Marrocos; no percurso escalámos Lisboa para integrar o Dr. Mário Soares na comitiva; fazia-se tarde; o voo de Lisboa a Rabat foi curto e rápidos chegámos à vertical do aeroporto; pedida autorização à torre para aterrar, esta negou, não explicou, e manteve-nos no ar; insistente, o Capitão piloto aviador Nazaré interrogava a torre e nada; instalou-se a estupefacção geral; o Presidente questionava porquês e que fazeres, ao que o ex PR Soares retorquiu: – “Vexa é o Presidente, pois então decida”; decisão complexa, continuámos a voar; mais uma hora, mais aviões de terceiros presidentes e finalmente aterrámos; o Presidente B. Clinton estava a chegar e o espaço aéreo foi interditado uma hora antes por segurança; relaxámos, afinal não era terrorismo, o que chegámos a suspeitar.

Fomos directos para o Palácio real, onde os restos mortais de Sua Majestade, acabados de ser velados, partiam já para o Mausoléu; o calor sufocava; o palácio abarrotava de luxos e de gentes, numa marroquinaria amalgamada de família real, presidentes, reis, príncipes e ministros; havia odores intensos no ar, dos muitos e arabescos comes e bebes, sem álcool e sem fins. A cidade de Rabat estava fechada; o povo adorava o Monarca e temia-se uma multidão incontrolável; mesmo assim, os marroquinos eram às centenas de milhares ao longo dos quatro quilómetros de funeral apeado até ao Mausoléu; o féretro real seguia num carro de múltipla tracção equídea; a família real masculina ladeava o carro a pé, seguidos por um bom milhar de metros de Chefes de Estado e outras dignidades; as mulheres não atendem os funerais muçulmanos.

A moirama em massa, que assistia ao desfilar do cortejo fúnebre, era milagrosamente contida por um sem número de polícias e militares, ombro a ombro; o último adeus ao Monarca era dor, angústia, paixão e fanatismo; a multidão ondulava, comprimia, expandia, empurrava, rugia emoções e explodia em lágrimas e desesperos.

Na primeira linha do cortejo iam os Presidentes Bill Clinton e Jacques Chirac, seguia-se o resto do mundo de presidentes e monarcas e até o imperador do Japão e seus seguranças; devido ao atraso, o Presidente J. Sampaio e o Dr. Morais Soares, eu e mais um segurança, entrámos em último lugar no cortejo; o Presidente determinou-me de imediato querer avançar e ficar atrás dos Presidentes Clinton e Chirac, tarefa impossível.

Mas, à custa de inauditas forças, resistência e sacrifícios, empurrões, pisadelas, riscos de quedas e esmagamentos iminentes, calores desmoralizadores, etc… tudo sofrido estoicamente pelo “heróico” Presidente Sampaio, por nós segurança conduzido e apoiado, ao longo dos intermináveis e infernais 4 kms apeados do percurso, por entre terceiros chefes de estado, todos blindados por seguranças irredutíveis, inacreditavelmente, lá nos posicionámos onde o Presidente determinara; o impossível realizou-se. Já dentro do mausoléu, imenso e sem fim, alagado em suor, corpo exaurido de forças, dorido e amassado, rosto em SOS de descanso, Sexa o Presidente sentou-se para a última cerimónia fúnebre; segundos depois, irrequieto, ordenou-me, “Senhor Superintendente, veja onde está o Presidente Bill Clinton e conduza-me lá, preciso de falar com ele acerca de Timor”…

  localizei-o e, naquele contexto de fúnebres e estranhas religiosidades, lá orientei o Snr Presidente, por entre toda aquela massa humana, até junto do Presidente dos EUA; expliquei à segurança a situação; o Presidente J. Sampaio aproximou-se do Presidente Clinton, que estava sentado e, enquanto os rituais mortuários continuavam, o Presidente Sampaio colocou-lhe ao ouvido questões urgentes de Timor, então em pleno auge do processo de independência; notável, mesmo naquele funeral, o Presidente não esquecia Timor, trazia-o consigo no seu coração e alma do enorme português, que foi em vida.

Nesse dia, depois duma reunião na Embaixada de Portugal, regressámos a Lisboa, foram pois 18 dias sem folgas, sem fins de semana, ou descansos de mais que umas parcas horas de sono; era assim a vida do Snr Presidente, um quase sem descansar permanente, sempre. Em Janeiro de 2000, realizou-se uma visita Presidencial a Timor e ali, tive oportunidade de conviver com outros aspectos verdadeiramente extraordinários do carácter e personalidade do Presidente Jorge Sampaio.

Viviam então os Timorenses ávidas e entusiasmadas sedes de “Liberdade e Independência”, depois da longa ocupação Indonésia e da total destruição da ilha em Set99.

O povo timorense foi mais português que Portugal, e excedeu-se em exuberantes boas-vindas, expressas em sorrires, dançares e cantares, oferendas de “tais” e imensas coisas mais; toda a visita foi um inacreditável e contínuo abraço de amor a Portugal e ao seu Presidente, o Dr. Jorge Sampaio; Sexa o PR emocionou-se aqui e ali, e derramou incontidas e espontâneas lágrimas no cemitério de Santa Cruz, no chão ainda rubro do massacrado sangue Timorense.

Continuando a visita, a última etapa da viagem foi Baucau, segunda maior cidade de Timor, dotada dum bom aeroporto, ainda construído por Portugal.

Ao chegar ali, Sexa o Presidente foi informado do falecimento da sua mãe, com quem tinha uma relação profunda mas, apesar do choque e a forte emoção, o seu elevado sentido de Estado, fê-lo cumprir todo o programa previsto, com enorme dignidade, até ao último acto.

O avião C-130 da Força Aérea Portuguesa, que iria transportar Sexa o PR de volta a Singapura, no regresso a Lisboa, aguardava na pista.

Nesse dia, findo o programa e a despedida formal do Representante Especial da ONU em Timor, Dr. Sérgio V. Mello e demais entidades, dirigimo-nos para o avião militar português mas, de chofre, um elemento da Força Aérea Portuguesa veio informar que uma das rodas do C-130 estava furada, que não havia roda sobressalente, nem hipóteses de a reparar e que, só no dia seguinte, poderia vir uma da Austrália, o que adiaria o regresso de Sexa o PR a Lisboa, por dois dias.

A perplexidade e a consternação atingiram tudo e todos; inicialmente, o impacto do inacreditável e depois, a dramática situação de Sexa o PR, com urgência de regressar a Portugal para o funeral da sua Mãe e, finalmente e ainda, a incomodidade da situação para o PR e Portugal, perante a presença de toda a comunidade internacional da ONU e timorense no aeroporto.

Sexa o Presidente, compreensível e visivelmente perturbado, obstinava-se contra a realidade, exigindo dos seus assessores sair dali, de imediato, para Singapura.

Pesem embora todas as diligências de Sérgio V. Mello/ ONU, dos Assessores do PR, etc… nada, só no dia seguinte haveria uma solução; o tempo escoava-se e, insidiosamente, o desespero e a incomodidade invadiam tudo e todos.

Eis se não quando, lá nos céus e ali, naquele dia e naquela hora, inopinadamente, o acaso fez aparecer um “Boeing” Búlgaro, fretado pela ONU, qu transportava militares da ONU/Bangla Desh (havia apenas um avião quinzenal!).

Desembarcados os passageiros, contactados os pilotos, disseram ir regressar já e vazios a Singapura; solicitados para darem uma “boleia” ao Presidente de Portugal e comitiva, hesitaram, mas avançada a “influência” do Dr. Sérgio V. Mello, ali mesmo no local, disseram que sim.

A inacreditável e oportuna “carona” no Boeing Búlgaro até Singapura, salvou a inconfortável situação, pessoal e oficial do Presidente.

Em todas estas situações e mil e uma outras que ivi, o Presidente Jorge Sampaio revelou-se sempre acima de todas as circunstâncias, por mais ingratas ou complexas que fossem, ultrapassando-as com excelência, superior auto domínio e sabendo ser sempre, Senhor e Presidente.

Com o falecimento do Dr. Jorge Sampaio, Portugal e o povo português perdem um dos seus maiores e mais sinceros amigos, um político e um estadista de excepção, um notável humanista, e um dos seus melhores Presidentes da República de sempre.

Vi pessoalmente o Presidente Sampaio comover-se muitas vezes até às lágrimas, que não escondia em público, perante pessoas e factos em geral e as suas circunstâncias particulares, infelizes a mais das vezes, revelando-se um Senhor de alma e coração invulgares e de sensibilidade e emoções fortes e fáceis, amigas e solidárias, para com todos os portugueses.

O Presidente da República Dr. Jorge Sampaio vai hoje deixar-nos, definitivamente, e baixar à terra mãe de todos nós; nesse momento, não duvido que os portugueses lhe saberão retribuir com saudade e mal disfarçadas lágrimas, o bem que a todos nos fez e a falta que nos fará, mormente enquanto Presidente de Portugal.

Que repouse em paz, eternamente, lá entre os maiores desta Pátria.