Nasci aqui em Mangualde, Hospital Velho, pai do Novo e bisavô dos actuais Centros de Saúde e, por cá me fiquei, até aos meus cinco anos, numa casa ali mesmo por cima da antiga mercearia do Snr Barbosa, dinâmico empresário e figura inesquecível e incontornável do Mangualde daquela época…

… era uma casa grande, de varanda corrida a terminar numa salinha, onde havia um piano desencantado da vida, triste e velho, em cima deste, um saco de veludo escuro, cheio de areia da Figueira da Foz, que eu não resistia nunca em abrir e nele meter as mãos e me pasmar, incompreendido, na finura sedosa da areia do mar, coisa desconhecida para mim…

… havia ainda duas cristaleiras cheias de taças, frascos e outros recipientes de vidro e cristal, cheios de marmeladas, geleias, doces de abóbora menina, ginja, cabaço… era a minha mãe que fazia todos aqueles doces, enquanto eu, irrequieto, cirandava em volta do fogão, maravilhado e guloso, ávido de os provar e com eles me lambuzar; adorava o de cabaço, que nunca mais tornei a ver.

Ali passei os meus primeiros cinco anos, “prisioneiro” da sossegada paz e bem estar daquela casa, com uma sala de estar principal a dar de vistas para o jardim, casa senhorial dos Conceições e Coreto…  ornada de verdejantes avencas, enormes tanto, que pareciam pairar no ar em insustentáveis levezas, e aí sim, havia um outro piano da vida encantado, mais jovem e mais alegre, de cauda imensa ao olhar duma criança e, dali via e vivia pelas janelas, os tempos dos mangualdenses de então.

A minha avó era “feitora” das terras da D. Amélia S. Brito, uma Santa Senhora, proprietária da casa, professora reformada, solteira e que muito me estimava, seria eu o afecto filial que nunca teve, ensinou-me a 1ª e 2ª classes, favor que eternamente lhe agradeço.

Eu, ora estava na salinha olhando as doçarias e a areia do mar ou, a mexer e remexer num infindável monte de cartas e postais duma vida inteira, por ali desarrumadas ao acaso, com selos fabulosos, que eram o meu encantamento de horas perdidas a olhá-los… outras vezes quedava-me a espreitar a vizinha menina, linda, da minha idade, a “Virinha”, ou surpreendia-me a admirar, numa relação de amor ódio, o enorme galo lá em baixo no pátio, que me atacava sempre que eu lhe invadia o seu reino, para ir à adega ou lojas, imponente, atemorizante, era um tirânico e putinesco galináceo, sempre de bico e bicadas em riste, dono e senhor dumas 40 galinhas, entre elas duas brancas e pequeninas, as granisés, simpáticas…

… todo ele era olhos coruscantes, desassossegados, crista empinada e escarlate, como se fosse uma coroa imperial, garbosamente vestido de multicoloridas penas, ofuscantes de intensos vermelhos, amarelos, pretos, cinzentos, verdes e, sempre em fera postura de Rei em pleno campo de batalha… o pátio, que eu atravessava escondido e nervoso atrás da saia da minha avó… infernizou-me os meus cinco anitos.

A minha avó tinha então construído três casas na Quinta de S. Cosmado, todas de raiz e a partir do zero, à custa do seu trabalho, nada herdado, foi uma mulher heroína da vida e do trabalho duro dos campos … um dia chegou a casa da D. Amelinha.. trazia no olhar uma certa ironia marota, de que nunca mais me esqueci… e cantarolou-me:- “Chora agora Josezito chora, que te vais embora, para não mais voltar…”, percebi e lá fui, definitivamente, para a Quinta de S. Cosmado… a aldeia, corria o ano de 1952.

A aldeia, era um mundo novo para mim, desconhecido, estranho… sem electricidade, água canalizada, esgotos ou casas de banho.. nem sequer a segurança caseira das portas fechadas, vivia-se sem chaves, de portas abertas ou encostadas, noite e dia, refeições simplórias, corridas a batatas e couves cozidas a meias com arrozadas ou massadas com feijão e pouco mais, de carnes e peixes ausentes, sem o rádio de luzinha verde sintonizadora, que eu ouvia maravilhado, questionando-me atarantado acerca dos incógnitos esconderijos e como lá caberiam dentro todas aquelas pessoas, que eu imaginava minúsculas, e que por ele falavam ou musicavam, nada de pianos, cristaleiras com doces… enfim… apenas simplicidades, cantareiras, masseiras, armários, camas, mesas, cadeiras, bancos, a lareira e um fogão enorme, lindo, feito pelo meu pai, serralheiro mecânico … eram as espartanices das vidas aldeãs..

… mas, raio, havia o pior de tudo, um galinheiro com um galo, sósia de cores, soberba e altivez, do de Mangualde e, também ele, com mais de 40 galinhas… ao vê-lo a primeira vez, não disse “porra” por desconhecer o palavrão mas, benza-o Deus, o galo aldeão era bem mais civilizado… convivemos pacificamente… tornou-se meu amigo, embora aristocraticamente distante.

A casa era toda ela agriculturas, canastros e gamelas a irem e virem, às cabeças da minha mãe e avó, de e para as terras, a regada, a tapada, o lanteirão, a tapadinha, etc.. de tudo carregadas; era uma casa rodeada de criação por todos os lados, coelhos, galinhas, porcos e leitões, uma cabra de seu nome “chireta”, cujo leite, eu pequeno almoçava ainda morno saído à bica da teta, e um cão, o meu “liró”, curiosamente nascido no mesmo dia que eu, cinco gatos da minha mãe, sempre enrolados á volta da lareira ou até aconchegados na estufa do fogão, e que, graças a Deus, dizimavam todos os ratos que nos invadissem, etc…

Anexa à casa havia uma quintinha nossa, soitos e pinheirais sem fim e baldios do povo, onde aprendi a voar na liberdade dos ventos, nos correres matas fora sem destino, com o meu incorrigível e infatigável “liró” atrás, nos subires ligeiros aos pinheiros e castanheiros e, principalmente, nos brincares dos jogos tradicionais, a bilharda, o berlinde, crikas, arco e gancha, bola de trapos, os três cantos, polícias e ladrões, trotinetes improvisadas com rolamentos de carros e madeiras, que íamos correr ali para a estrada de Viseu, nas amoreiras, imensas, eram duas, uma branca e outra preta, ao lado dumas terras do Snr Ireneu e da “separadora, a Embel” do Snr Coelho, ainda não havia Citroen, etc…

Não me lembro sequer da estranheza de passar a viver à noite, em casa, à luz de candeeiros a petróleo, uns de latão e outros de vidro, de fumos e cheiros incómodos, do passar a lavar mãos e cara em lavatórios de ferro forjado, com espelho, jarro de água e balde, banheira de latão móvel, para banhos de oito em oito dias, bacios para necessidades nocturnas mas, de dia, as casas de banho eram exteriores e medievais, latrinas… ou coisas dos pinheirais…

… recordo apenas as alegrias, para mim novas, de passar o tempo ali à volta da casa, quase por minha conta e risco, e de ter amigos, muitos, o Toninho, Carlos e Fernando do Barroso, o Manuel Nunes, o Júlio Matança, o Fernando e o Tóino de Tabosa, o Manuel do Guarda Rios, o Zé Gaio, Zé Pintinhas, Fernando do Lino, etc… e o impagável Manuel, o Gem ou Laparoto..  com os quais brincava quase todos os dias…

… e recordo, também, as barafundas agrícolas, das quais fui espectador até aí aos dez anos, depois passei a pouco e pouco a participar no esforço familiar, entre as idas para a escola e depois colégio.

Em menos de nada era puro aldeão, habituei-me ao pé descalço e calções no Verão, por gosto…  no Inverno sempre tive umas botitas de carneira, compradas na feira, bem regateadas no preço pela minha avó e, tornei-me de facto rural do ser e do ter, simples servo da gleba; mas como tal, era e fui feliz, muito, juro.

Chegados os sete anos lá fomos todos para a escola primária, íamos e vínhamos juntos, ora pelo cemitério e igreja matriz, ora pela cruz da mata, atravessávamos Mangualde dum lado ao outro e lá chegávamos… era outro mundo, o das primeiras letras, contas e saberes, com recreios cheios de vida de mais dum cento e meio de meninos e das suas incessantes correrias, jogos e gritarias, coraçõezitos de todos nós aos pulos, alegres e festivos, a viverem sofregamente os primeiros raios do sol das vidas crianças, que todos éramos…

… a inocência infante, a ausência da maldade e das bizarras mesquinhices adultas, a pureza das amizades, ainda sem complexos de classe, a busca intensa do viver plenamente o momento que passava, e dele nada mais esperar que não sonhos e risos de contentamentos feitos, foram tempos imemoriáveis.

Do meu tempo da escola de Mangualde, nunca esqueci os professores desses meus primeiros passos letrados na vida, de seus nomes, Profs Silva, D. Nazaré Beja, Otacílio, António José, Santana (57/61)… e o seu, de todos eles, elevado profissionalismo, profunda seriedade, empenhamento total e dedicação sem limites ao sucesso escolar dos seus alunos, o extraordinário saber e, sobretudo, jamais lhes esqueci…

… a amizade, o carinho e o cuidado com que todos Eles nos ensinavam as classes primárias, leituras, aritméticas, caligrafias, ditados e gramáticas, desenho à vista, redacções, ortografias, história e geografia, ciências naturais, etc… ah! nunca me deram reguadas ou pauladas… coisas mais do imaginário político reviralhista, do que da realidade passada…

… e, ensinavam-nos tudo, e não só letras, números e cultura básica, mas ensinavam-nos…  a Vida, civismo, educação, a Bandeira e Hino Nacionais, o amor à Pátria e à Família, o País que éramos,  o mundo onde nos integrávamos, para onde íamos e, acima de tudo, ensinavam-nos os caminhos da esperança e do futuro…

… e, no fim, davam-nos um diploma, o do exame da 4ª classe, verdadeiro passaporte para a vida adulta e para qualquer emprego sem licenciatura, que emoldurávamos nas casas de cada um… com muito orgulho e vaidade…Bem hajam todos eles… e que estejam em paz.

Feita a 4ª classe, o determinismo das finanças familiares obrigava uns a empregarem-se quase logo e, outros, mais sortudos das cuja finanças, iam estudar, para serem algo mais que operários, agricultores de enxada na mão ou empregados de escritório… e assim, os meus amigos quase todos foram trabalhar ali pelos doze anos ou menos, todos eles vieram a ser óptimos profissionais e bem sucedidos nos seus misteres, eu fiquei-me pelas ajudas nas coisas agrícolas à minha avó e mãe e fui estudar.

A vida dos adolescentes das aldeias de então, feita a 4ª classe aos 10 ou 11 anos, mudava radicalmente em tudo, passava a ser trabalho em oficinas, fábricas e escritórios, sendo os maiores empregadores em Mangualde, a oficina do Venâncio e outras, a empresa de construção do Snr Custódio Santos Guerra, mais as fábricas de serração de madeiras do Duarte Carvalho e do Alberto Gaspar, a separadora “Embel”, que separava estanho a partir do minério de cassiterite e só depois veio a Citroen.

As adolescências minha e dos meus amigos passaram pois para este novo patamar, de dia, trabalho ou estudo, à tardinha e à noite juntávamo-nos, lá no alto do povo, jogávamos a qualquer coisa nas zonas iluminadas pela electricidade, uma bênção de ver para crer recém chegada à aldeia, tinha eu quinze anos, íamos então ao Patronato ou às tabernas amigas da garotada, o Nove à Hora, a Russa, etc… ver as séries da TV que faziam as nossas delícias… o Bonanza, a Fúria, a Lassie, o Rin Tin Tin, o Danger Man, o Homem Invisível, o inesquecível humorista Camilo, as variedades, etc… ninguém tinha televisão em casa na minha aldeia… era coisa rara e cara.

O cinema era quase uma inevitabilidade, aos sábados à noite ou nas matinées de domingo… o Cine Teatro de Mangualde tinha sempre expostos no seu átrio exterior, os cartazes dos filmes a exibir, e tudo o que fossem “cowboyadas”, guerra, Joselitos, Cantinflas, Marisol, filmes portuguesas e de aventuras em geral, lá estávamos, íamos todos para a geral, bancos corridos de madeira, lá no fundo e ao alto junto ao tecto, 2$50 escudos por bilhete, que eu inventava indo vender à socapa ovos das galinhas à mercearia da minha Tia Ana, ali na curva dos condes, por baixo da casa do cónego.

O futebol foi sempre do gosto de todos no jogar e no ouvir dos relatos, nas tabernas, domingo à tarde, era uma praxe cumprida com devoção, assim como seguir os relatos dos jogos da selecção nacional de hóquei em patins, na altura desporto muito popular no mundo, normalmente já noite feita, fomos várias vezes campeões mundiais… sabíamos de cor os nomes de todos os nossos jogadores… delirávamos com as nossas vitórias contra a Espanha, Argentina, Itália… os nossos competidores mais fortes pelo título mundial.

Claro que tínhamos e vivíamos também com muita intensidade todas as alegrias das tradições portuguesas, religiosas e pagãs, presentes quer nas festividades religiosas, Natal, Domingo de Ramos, Páscoa, quer nas Romarias da Nossa Snra do Castelo e do Santo António… no Carnaval, etc… e também nas festas anuais das aldeias, que corriam por todo o Verão…

 

ORQUESTRA JAZZ OS AZURARAS, MANGUALDE

ORQUESTRA JAZZ OS AZURARAS, MANGUALDE

… todas elas eram provas de vida e vitalidade, orgulho e vaidade dos povoados, pela via religiosa ou pagã… com “morteiros” de ribombar forte e feio e fogos de artifícios, logo no alvorar do dia, luzes multicores no recinto da festa e ruas fora, doçarias secas a granel, copos de tinto a quartilhos nas barracas atabernadas para o efeito… procissões, adorações, missas… tudo sentido e autêntico, só vivido, contado não dá…

… e mais a música debitada por uma aparelhagem alugada, que inundava a aldeia o dia inteiro, e as bandas, os conjuntos, o Jazz Azurara da Beira de Mangualde, etc… a abrilhantarem os festejos e os “dancings”, onde quase todos nós, os adolescentes, pelas primeiras vezes, tínhamos oportunidade de abraçar as meninas nas voltas e revira voltas das danças, de nos encostarmos subtilmente aos seus encantos femininos, sob os olhares binoculares das mães das dançantes… e onde os “a menina dança?” e as tampas, que muitas das vezes se seguiam, eram o desespero dos rapazes… mas enfim, sempre dançávamos alguma coisa… respirando sedentos aqueles, inesquecíveis e fugidios, momentos e perfumes do encontro de corpos a florescerem de vida e para a vida, e a imaginação voava…

… os bailes eram, pois, para nós, o supremo máximo dos máximos, passe a triplicidade dos superlativos, de quaisquer romances ou namoradices adolescentes dos nossos tempos meninos e moços, eram sonhos de Verão… e como ele eram efémeros… porque os pais das nossas adolescentes meninas guardavam-lhes a pureza a sete chaves, nos rigorosos conformes dos padrões morais desses tempos que, infelizmente, se foram, e hoje é o que se sabe e não sabe, traduzido no fim da família, em curso.

Nas aldeias de então, uma das brincadeiras, por vezes mal interpretada, mas pacificamente aceite, era a “maldade” adolescentes que, caída já a noite, tinha por tradição ir “provar” as frutas alheias já maduras, directamente ao produtor, ainda nas árvores… sem falarmos com os próprios; em abono da verdade, eu me confesso, ter sido useiro e vezeiro líder incontestado de tais golpes de mão a frutas alheias, sem precisão, pois tinha as minhas que apodreciam no chão ou nas árvores, fui um incorrigível “habitué” de tais adolescentices aldeãs… íamos sempre em grupo… nada estragávamos, apenas provávamos as mais temporãs e melhores de todas elas, por mim mapeadas e sabidas de ginjeira, mesmo as ginjeiras, e nada mais…  eram simples malandrices de brincadeira e tradições vindas lá do fundo dos tempos.

Para muitos de nós, que tínhamos ganho o gosto pela leitura na escola primária, sendo facto que todas as casas da aldeia, excepto uma, a do Snr Joaquim, o Guarda Rios, nenhuma outra tinha livros… só “enxadas” … a chegada a Mangualde da Biblioteca itinerante da Gulbenkian, de quinze em quinze dias, salvou-nos a vida… eu e o Carlos do Barroso, íamos sempre os dois, cada um trazia o máximo de livros, cinco, trocávamos… e tínhamos livros para ler nesses quinze dias… eram os meus serões em casa, já na cama, e foi nessas leituras, à luz e fumos dos candeeiros a petróleo, que  percorri o mundo, a sua História e Geografia, as guerras, os sonhos romanceados, e saberes vários… o que agradeço à Gulbenkian.

Pelo correr do texto se vê, como era diversa a vida das crianças e adolescentes, no mundo aldeão e semi urbano, dos anos 50 e 60; quando hoje olho os meus netos, tal como todos os outros netos e filhos de todos nós, rodeados de confortos e absorvidos noutras facilidades e modernidades, coisas de ficção cientifica para os anos 50 e 60, e que os escravizam a tempo inteiro, aprisionando-os mergulhados em écrans virtuais a viverem irrealidades, eu sinto pena, muita, que não tenham as liberdades e alegrias dos meus tempos meninos e infantes… é o progresso… que Deus os salve do progresso do progresso.

Depois chegava a vida adulta, cada um seguia o seu destino mas, a amizade dos jogos e brincadeiras das crianças e adolescentes, que todos fomos, cimentada nos bancos da escola primária, alegrada nos bailaricos adolescentes nas festas das aldeias e nas idas aqui e ali para vermos as séries da TV, ouvirmos relatos de futebol, etc… idas ao Cine Teatro … e até as inocentes provas de frutas alheias… essa amizade ficou para sempre, é a mais pura e forte de todas… sobrevive a tudo e vai além da vida, infelizmente, destes meus amigos, quatro já partiram, que estejam para sempre em paz e sossego, como todos vivíamos… “in illo tempore”.

 

 JOSÉ LUIZ DA COSTA E SOUSA

Um Mangualdense